MEMÓRIAS DE UM
OITENTÃO (7)
AS ÁGUAS DE ABRIL
Eu tinha nove anos, menino, criado livre, leve
e solto na praia da Avenida da Paz em Maceió. Certa noite de abril de 1949, eu
fiquei apavorado com os relâmpagos, trovoadas e muita chuva forte, batendo no telhado
e no chão feito um chicote. Ao mesmo tempo fiquei feliz ao lembrar os
caranguejos que sairiam de seus buracos assustados pelos trovões. Durante a
tarde eu havia colocado algumas “ratoeiras”, feitas de lata de óleo, nas tocas
de goiamuns às margens do Riacho Salgadinho. Já deviam ter caranguejos presos,
eu pensava. Noite adentro aumentou o temporal diluviano. O riacho Salgadinho
transbordou, as águas cobriram a rua e entraram em nossas casas na Rua Silvério
Jorge, onde eu morava. As grandes chuvas de maio estavam acontecendo em abril.
Durante aquela noite
uma forte enxurrada desceu veloz do bairro do Tabuleiro, passando pelas ruas e casas
chiques do bairro do Farol, num barulho aterrador de água em movimento. O
vagalhão avançou como se fosse uma onda desgovernada atropelando o que
encontrava pela frente: carros, carroças, lixeiras. Derrubou árvores. Quando a
enxurrada se intensificou descendo feito forte cascata na Rua Barão de Anadia,
bairro de Mangabeiras, ouviu-se um forte estrondo, foi um enorme bloco de
barreira que se rompera, caindo por trás das casas daquela rua, onde soterrou
cerca de 20 residências, mais de 30 moradores mortos.
No
leito do vale do Riacho Reginaldo–Salgadinho a correnteza cada vez mais
volumosa, insustentável, arrastava o que havia em seu corredor. Na foz, onde o
riacho deságua na Avenida da Paz, o vagalhão chegou tão forte que rompeu ao
meio a ponte de concreto da avenida. A ponte desmoronou, quebrou-se em dois
enormes blocos de concreto, arrastados à beira-mar.
Onde havia a ponte sobre o Salgadinho,
ficaram apenas trilhos dos velhos bondes pregados em seus dormentes. O bonde
era o transporte urbano mais usado àquela época.
Ao amanhecer foram percebidos os
estragos da catástrofe provocados por um volume de chuva nunca visto. Curiosos,
usuários do bonde para o trabalho ficaram estarrecidos, contemplando as
consequências da água violenta naquela manhã.
A
Rádio Difusora dava detalhes da catástrofe, a enxurrada havia derrubado a ponte
da Avenida da Paz. Depois do café da manhã, eu fui em busca de minhas
“ratoeiras”, pensando ter um goiamum preso em cada uma. Procurei-as nos locais
onde havia armado na saída do buraco, não encontrei uma sequer. Alguns locais
estavam submersos. Retornei à praia, entrei no Hotel Atlântico, de uma
privilegiada posição, na varanda, fiquei contemplando emocionado o vão da ponte
apenas com os dormentes do bonde balançando.
Dois enormes blocos de
concretos, dois pedaços de ponte levados pela correnteza, como se fossem rochas
naturais jaziam à beira mar sendo molhados pelas marolas. Fiquei encantado com
os trilhos pregados no dormente, resistindo numa linha curva, o que restou da
tragédia.
Esses mesmos trilhos
serviram como base de construção de uma ponte de pedestre provisória para
usuários dos bondes atravessarem fazendo baldeação da linha Vergel do Lago -
Ponta da Terra e vice versa. Os bondes paravam na cabeceira da ponte, o
passageiro recebia um tíquete, atravessava a ponte improvisada, tomava outro
bonde que o levava ao destino.
Carros, caminhões e ônibus
seguiam seu destino de Ponta da Terra para o Centro, arrodeando, via bairro do
Poço.
A meninada inocente aproveitou a
tragédia como divertimento. Todo dia nós acompanhávamos as obras de engenharia,
a construção da nova ponte do Salgadinho. Da cabeceira descíamos, ficávamos
embaixo da ponte estreita de pedestre, em local estratégico, apreciando o que
havia por baixo das saias das mulheres que atravessavam distraídas.
Com a construção rápida de uma
ponte de madeira provisória na Rua Silvério Jorge, o trânsito voltou ao normal
na região da orla. Minha rua ficou intensa, acabou-se o bucolismo. A nova ponte
de madeira terminou a tranquilidade da rua, entretanto, continuou o
divertimento de apreciar bater estacas e a concretagem de pilares e vigas. Foi
nossa diversão até terminar a construção. A obra durou cerca de um ano, a nova ponte
de concreto foi inaugurada com grande estardalhaço pelo então governador
Silvestre Péricles de Gois Monteiro..
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