OITENTA (2)
Ao completar 80 anos, vivo a recordar
passagens de minha vida agitada e bem vivida, alguns fatos que ficaram em minha
mente e no coração, fazem parte de meu ser. No longínquo de 1955, eu era um
adolescente, 15 anos, vindo de uma infância livre, leve e solta, pelos
arredores da praia da Avenida da Paz. Naquela época em Maceió havia apenas a
Faculdade de Direito, as outras opções de “futuro brilhante” era submeter-se
aos concursos do Banco do Brasil ou da Escola Militar. Cheio de empolgação,
família de militares, era um crack na matemática, encarei o difícil exame para
Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza. Certa noite de festa de rua de
natal na Praça Sinimbu, um amigo, Jarbas Bagdá, deu-me a notícia mostrando o
jornal, O Globo do Rio, estava lá meu nome entre os aprovados, era a glória. Corri desembestado para dar a notícia em
casa. Dona Zeca, festeira que só ela, improvisou maior festa, meu pai
orgulhoso, amigos e parentes, bebidas e comidas à vontade. Altas horas, ao
terminar a comemoração familiar, atravessei a Avenida da Paz, andei pela praia
de areia fofa com uma garrafa de vinho numa mão, sapatos na outra. A lua
iluminava a imensidão do mar. Eu pensava, me perguntando, ”O quê será?”.
Retornei, subi os degraus do coreto, sentei-me
no parapeito, olhando para o infinito, não sei de felicidade ou tristeza chorei
como menino. Naquele momento estava
deixando de ser menino. Ser menino foi uma passagem extraordinariamente bela de
minha vida. Logo o dia amanheceu
lindamente alaranjando o céu. Dei os últimos goles na garrafa, entre feliz e
bêbado, fui dormir.
O Exército deu-me a viagem para Fortaleza
em duas etapas: de Maceió ao Recife de trem, e do Recife à Fortaleza, via
marítima. Numa madrugada de março, deixando minha mãe chorosa, meu pai levou-me
à bela Estação Ferroviária de Maceió. Embarquei no trem para Recife juntamente
com Rubião Torres e Élio Wanderley, outros alagoanos aprovados nos exames da
EPF. Partimos no famoso Trem das Alagoas às 06:00 horas da manhã com chegada
prevista 18:00 horas, nunca cumpria o horário.
Escalas incontáveis, Bebedouro, Fernão
Velho, Satuba, União dos Palmares, pequenas cidades perdidas nos canaviais.
Nas estações, desciam e entravam novos
passageiros. O trem parava o mínimo tempo, os ambulantes aproveitavam para
vender frutas e outras comidas. ”Olha a manga madurinha... Cavaco, olha o
cavaco... Tapioca quentinha feita na hora...Olha a água de quartinha...Chapéu
de palha...” Esses ambulantes me impressionaram. Em cada estação pareciam as
mesmas pessoas, os mesmos artigos oferecidos. Também havia pedintes. ”Dê uma
esmola para o aleijadinho... Um auxílio para quem tem fome”... Os meninos
pediam tostões e o ceguinho cantava na viola: ”Seu José, Dona Maria... Tenha
pena do ceguinho que não vê a luz do dia...”
O maquinista puxava o apito, o foguista
botava lenha, a vistosa Maria Fumaça puxava os vagões como se fora a mãe pata e
os patinhos em fila. O trem invadia canaviais, verde cana, cana caiana. O azul
do céu encontrava-se com o verde dos morros nos horizontes ondulados. O poeta
Ascêncio Ferreira imortalizou essa viagem com o poema, "O Trem das
Alagoas". "Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade
de chegar... Mergulham mocambos nos mangues molhados... Moleques mulatos vêm
vê-los passar... Adeus, adeus, mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor. Adeus
morena dos cabelos cacheados... Vou danado pra Catende com vontade de
chegar...Cana caiana, cana roxa, cana fita, cada qual é mais bonita, todas boa
de chupar...Vou danado pra Catende, com vontade de chegar. Já deixei a praia
longe...e vem perto outro mar.”
O outro mar ainda desconhecido estava
longe, viagem cansativa, bancos de madeira dura. Conversávamos, especulávamos o
que haveria de ser, três meninos. No fundo do coração batia a saudade de meus
pais, de meus irmãos, de meu mundo, de minha praia. Às vezes tinha vontade de
chorar, olhava o verde canavial no infinito e disfarçadamente enxugava uma
lágrima. Eu era apenas um menino.
Na hora do almoço, fomos para o vagão
restaurante. Tomamos bebidas conversando amenidades, a cerveja alegrou o
restante de viagem. Era noite quando o trem entrou na última estação, afinal
Recife. Primeira etapa da viagem cumprida, a danada da saudade a apertar, não
valia chorar.
Ao descer do trem, avistei Seu Marcos, sogro
de minha irmã Rosita. Levou-me para sua casa, belo prédio antigo na Rua da
Imperatriz, centro do Recife. Tive tratamento de príncipe, no outro dia
embarcaria para Fortaleza no navio de guerra Barroso Pereira com futuros
colegas. Cansado fui deitar. Com o travesseiro abafei meu choro, minhas lágrimas,
meus temores. Adormeci. Nessa noite fiz xixi na cama.
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