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quinta-feira, 12 de março de 2020

HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA


                                                    OITENTA (2)



         Ao completar 80 anos, vivo a recordar passagens de minha vida agitada e bem vivida, alguns fatos que ficaram em minha mente e no coração, fazem parte de meu ser. No longínquo de 1955, eu era um adolescente, 15 anos, vindo de uma infância livre, leve e solta, pelos arredores da praia da Avenida da Paz. Naquela época em Maceió havia apenas a Faculdade de Direito, as outras opções de “futuro brilhante” era submeter-se aos concursos do Banco do Brasil ou da Escola Militar. Cheio de empolgação, família de militares, era um crack na matemática, encarei o difícil exame para Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza. Certa noite de festa de rua de natal na Praça Sinimbu, um amigo, Jarbas Bagdá, deu-me a notícia mostrando o jornal, O Globo do Rio, estava lá meu nome entre os aprovados, era a glória.  Corri desembestado para dar a notícia em casa. Dona Zeca, festeira que só ela, improvisou maior festa, meu pai orgulhoso, amigos e parentes, bebidas e comidas à vontade. Altas horas, ao terminar a comemoração familiar, atravessei a Avenida da Paz, andei pela praia de areia fofa com uma garrafa de vinho numa mão, sapatos na outra. A lua iluminava a imensidão do mar. Eu pensava, me perguntando, ”O quê será?”.
    Retornei, subi os degraus do coreto, sentei-me no parapeito, olhando para o infinito, não sei de felicidade ou tristeza chorei como menino.  Naquele momento estava deixando de ser menino. Ser menino foi uma passagem extraordinariamente bela de minha vida.  Logo o dia amanheceu lindamente alaranjando o céu. Dei os últimos goles na garrafa, entre feliz e bêbado, fui dormir. 
    O Exército deu-me a viagem para Fortaleza em duas etapas: de Maceió ao Recife de trem, e do Recife à Fortaleza, via marítima. Numa madrugada de março, deixando minha mãe chorosa, meu pai levou-me à bela Estação Ferroviária de Maceió. Embarquei no trem para Recife juntamente com Rubião Torres e Élio Wanderley, outros alagoanos aprovados nos exames da EPF. Partimos no famoso Trem das Alagoas às 06:00 horas da manhã com chegada prevista 18:00 horas, nunca cumpria o horário. 
    Escalas incontáveis, Bebedouro, Fernão Velho, Satuba, União dos Palmares, pequenas cidades perdidas nos canaviais.
    Nas estações, desciam e entravam novos passageiros. O trem parava o mínimo tempo, os ambulantes aproveitavam para vender frutas e outras comidas. ”Olha a manga madurinha... Cavaco, olha o cavaco... Tapioca quentinha feita na hora...Olha a água de quartinha...Chapéu de palha...” Esses ambulantes me impressionaram. Em cada estação pareciam as mesmas pessoas, os mesmos artigos oferecidos. Também havia pedintes. ”Dê uma esmola para o aleijadinho... Um auxílio para quem tem fome”... Os meninos pediam tostões e o ceguinho cantava na viola: ”Seu José, Dona Maria... Tenha pena do ceguinho que não vê a luz do dia...”
    O maquinista puxava o apito, o foguista botava lenha, a vistosa Maria Fumaça puxava os vagões como se fora a mãe pata e os patinhos em fila. O trem invadia canaviais, verde cana, cana caiana. O azul do céu encontrava-se com o verde dos morros nos horizontes ondulados. O poeta Ascêncio Ferreira imortalizou essa viagem com o poema, "O Trem das Alagoas". "Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar... Mergulham mocambos nos mangues molhados... Moleques mulatos vêm vê-los passar... Adeus, adeus, mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor. Adeus morena dos cabelos cacheados... Vou danado pra Catende com vontade de chegar...Cana caiana, cana roxa, cana fita, cada qual é mais bonita, todas boa de chupar...Vou danado pra Catende, com vontade de chegar. Já deixei a praia longe...e vem perto outro mar.”
    O outro mar ainda desconhecido estava longe, viagem cansativa, bancos de madeira dura. Conversávamos, especulávamos o que haveria de ser, três meninos. No fundo do coração batia a saudade de meus pais, de meus irmãos, de meu mundo, de minha praia. Às vezes tinha vontade de chorar, olhava o verde canavial no infinito e disfarçadamente enxugava uma lágrima. Eu era apenas um menino.
    Na hora do almoço, fomos para o vagão restaurante. Tomamos bebidas conversando amenidades, a cerveja alegrou o restante de viagem. Era noite quando o trem entrou na última estação, afinal Recife. Primeira etapa da viagem cumprida, a danada da saudade a apertar, não valia chorar.
    Ao descer do trem, avistei Seu Marcos, sogro de minha irmã Rosita. Levou-me para sua casa, belo prédio antigo na Rua da Imperatriz, centro do Recife. Tive tratamento de príncipe, no outro dia embarcaria para Fortaleza no navio de guerra Barroso Pereira com futuros colegas. Cansado fui deitar. Com o travesseiro abafei meu choro, minhas lágrimas, meus temores. Adormeci. Nessa noite fiz xixi na cama.





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