OITENTÃO (4)
Meus 80 anos
estão sendo comemorados constantemente. Por conta dessa idade magnífica, resolvi
contar algumas histórias e fatos marcantes de minha vida. Peço desculpas aos
leitores que gostam mais das histórias picantes. Prometo que depois dessa fase
de memórias, retornarei com histórias cheias de sacanagem.
Inesquecível a entrada triunfal na Academia Militar das
Agulhas Negras. Em frente ao Portão Monumental, estavam formados os novos
cadetes vindo das mais diversas cidades do Brasil, de todas as classes sociais,
de todas as cores raciais, de todas as religiões, tínhamos em comum a admissão
na dificílima seleção intelectual e física para ingressar na AMAN. Éramos
jovens orgulhosos em participar daquela solenidade caracterizada pela passagem
dos novos cadetes pelo portão especial, ao lado da entrada principal, que só
era aberto uma vez por ano e sempre pelo cadete mais novo da turma. Em 1959 teve
a honra de ser “cadete claviculário” o mineiro, Cássio Rodrigues da Cunha,
(tornou-se um dos mais brilhantes generais do Exército Brasileiro). Logo após a
abertura, entramos marchando no asfalto em linha reta até o prédio da Academia.
Naquele momento me sentia feliz e orgulhoso.
Fiquei deslumbrado com as instalações da Academia, uma das
mais bonitas do mundo. A vida de cadete na AMAN era semelhante à da Escola
Preparatória de Fortaleza. Alvorada às 6:00 da manhã, seguida de Educação
Física. A novidade foi a equitação, eu nunca havia montado num cavalo, aprendi
rápido e muitas vezes em fim de semana cavalgava pelo vale do Paraíba com
colegas. O estudo era altamente organizado como em todas as Escolas Militares.
No dia de prova o professor entregava as provas, saía da sala de aula, uma hora
depois retornava recolhendo as provas. Ninguém colava. Era Código de Honra dos
cadetes. O expediente terminava às 17:00 horas, tínhamos opção de assistir a um
filme no cinema da AMAN ou dar uma volta na cidade de Resende ou estudar, eram
matérias difíceis: Cálculo, Português, Balística, Psicologia, Economia,
Geopolítica, Inglês, Física, Química, Pesquisa Científica, Filosofia, Instrução
Militar específica, entre outras matérias.
Eu amava ler algum romance no bucólico bosque do riacho
Lambari. Foi lá que um dia me contaram a história da construção da AMAN que se
tornou lenda.
No início de 1943, tempo de II Guerra Mundial, a
construção da AMAN foi paralisada por falta de verba; funcionava a velha Escola
Militar do Realengo.
Naquela
época uma das diversões dos cadetes era cavalgar nos dias de folga. Oito cadetes
amigos costumavam montar nos fins de semana. Oito companheiros inseparáveis
saíam sempre juntos, um ajudava ao outro nos estudos, nas dificuldades. Eram
irmãos por opção. Em algumas noites costumavam sorrateiramente cavalgar até uma
boate de mulheres que havia no subúrbio do Rio de Janeiro. Os oitos cadetes
vestiam-se com pelerine (capa militar longa, azul marinho, sem mangas), botas e
o quepe a Príncipe Danilo. O mulherio se assanhava quando eles apareciam. Faziam
farras homéricas no cabaré. Diversão de alto risco. Se fossem apanhados pela
Patrulha Militar pegariam cadeia ou até expulsão.
Certa
noite depois de dançar, deitar com as “namoradas” e farrear, os oito cadetes
montaram nos cavalos escondidos no mato, em duplas galoparam pela estrada,
retornando à Escola Militar de Realengo. Ao passar por uma rua deserta, por
volta das 23 horas, perceberam numa esquina escura quatro homens assaltando,
batendo num senhor, ele pedia clemência, que não lhe matassem. Os cadetes não
precisaram combinar, puxaram as rédeas dos cavalos em disparada para o local do
assalto, com destemor e perícia, desmontaram dos cavalos a galope, agarraram os
bandidos. Dois cadetes socorreram o cidadão machucado de murros e pontapés,
devia ter cerca de 60 anos, os outros prenderam os marginais. Entregaram os
facínoras numa delegacia próxima, o velho ferido foi deixado num hospital, ao
chegar à Escola deixaram os cavalos nas baias, foram dormir.
Na segunda-feira durante a formatura
matinal, o comandante da Escola Militar do Realengo pediu à tropa para que os
cadetes que tinham salvado a vida de um cidadão se apresentassem; o filho desse
senhor encontrava-se na Escola, queria agradecer pessoalmente. Receosos em
pegar uma cadeia, os oito amigos não se revelaram. Depois de o comandante muito
insistir e prometer de não haveria punição, os cadetes se apresentaram. Foram
levados à presença do velho no hospital. Era nada mais nada menos que Henrique
Lage, um dos homens mais ricos do Brasil, donos de empresas, inclusive o Loyd
Nacional, companhia de navios que fazia a costa brasileira. O rico senhor
agradeceu aos cadetes e perguntou qual a precisão de cada um, eles escolhessem
o que quisessem: uma casa ou carro, ou o que fosse. Os oito amigos pediram para
pensar. Reuniram-se, discutiram muito. No dia seguinte foram ao ricaço. Nada
queriam para eles, pediam que ele ajudasse a terminar a construção da Academia
Militar das Agulhas Negras que estava paralisada. O velho deu a ordem, mandou
buscar o mais fino mármore de Carrara na Itália para o revestimento, mandou comprar
todo o piso em granito, recomeçaram as obras da Academia por sua conta. Até
hoje perdura a suntuosidade daquele belíssimo conjunto arquitetônico. A AMAN é
considerada a mais bonita Academia Militar do mundo, graças à digna história
dos oito cadetes, hoje anônimos militares reformados de nomes esquecidos,
entretanto, o belo gesto, a coragem, o destemor e o amor à Escola, tornaram-se
lenda.
A
Academia foi base de minha aprendizagem, do meu saber e do amor ao Brasil ao
longo desses 80 anos. A Academia ainda deu-me uma das maiores riquezas que
conservo todo esse tempo: os colegas que entraram por aquele portão tornaram-se
meus irmãos.
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