OITENTA
Quando eu era jovem, bem
jovem, imaginava um homem de sessenta anos, balançando-se numa cadeira
confortável, apenas esperando a morte chegar. Hoje cheguei aos oitenta,
ultrapassei a barreira de meu prognóstico de vida para um velho homem. Agora, deitado
numa rede na varanda de minha confortável casa na praia, leio um poema de meu amigo
Lêdo Ivo que gravei na parede da sala.
Na Barra de São Miguel, diante do mar,
só agora aprendi:
o dia mais longo do homem
dura menos que um relâmpago.
só agora aprendi:
o dia mais longo do homem
dura menos que um relâmpago.
O tempo inexorável com fome ávida vai devorando o que resta de uma
vida que dura menos que um relâmpago. A alguns homens memórias distantes se consentem.
Eu ainda sinto a brisa do mar da praia da Avenida da Paz. Está gravada em minha
mente, certa tarde depois de um almoço na casa de minha avó, seus filhos e
netos reunidos, sentados em cadeiras de palhinha, embaixo de uma frondosa amendoeira
da Avenida da Paz, conversando alegremente sobre todos os acontecimentos da
cidade. De calça curta com cinco ou seis anos, eu brincava com irmãos e primos,
subíamos as escadas do belo coreto branco, pulávamos na areia fofa da praia.
Naquele cenário de um mar
azul esverdeado e água cristalina, passei minha solta e alegre infância. Na
extensa praia jogávamos futebol, olhávamos as moças de maiô, brincávamos de
trincheiras, jogando bolas de areia no inimigo, soltávamos ao vento as arraias
(pipas) coloridas no céu. À noite o calçadão da Avenida da Paz era uma festa. A
mocidade jogava garrafão, brincava de roubar bandeira, andar de bicicleta. Ao
ganhar um par de patins no natal, coloquei-o na hora fui à calçada iniciei
levando quedas, arranhando os braços até aprender a me equilibrar.
Todos os dias pela manhã, tomava o bonde na Avenida rumo ao Centro
da cidade onde eu estudava no Colégio Diocesano (Marista). Ao meio-dia, suado,
exausto, tomava o bonde de volta, linha Vergel do Lago - Ponta da Terra, ao
passar por minha casa descia do bonde andando, uma proeza para encantar as
mocinhas sentadas esperando parar no ponto. Com minha curiosidade aguda eu gostava
de estudar, na matemática era o rei da sala de aula. Em casa meu pai tinha uma
boa biblioteca, comecei a ler bons livros, o Tesouro da Juventude, li todos de
Monteiro Lobato, mas fiquei fascinado com O Minotauro. Depois entrei nos
grandes romances da humanidade. Às tardes
eu estudava numa puxada que meu pai construiu no fundo do quintal, dava uma
passada nos livros, depois seguia para o lamaçal à beira do Riacho Salgadinho
colocando “ratoeiras” feitas de lata de óleo nos buracos de caranguejo. Não
havia alegria maior quando depois retornava para olhar as “ratoeiras” e tinha
alguma com um goiamum enorme, preso. Levava para casa e deixava-o num engradado
de madeira e taipa, para cevar. Quando completava mais de 20 caranguejos cevados
minha mãe cozinhava uma bela garanguejada, os amigos se empanturravam. Às vezes
organizávamos campeonato de futebol de botão. Geralmente na casa do Lizardo e
Mário Jardim onde eles construíram um perfeito campo, liso, sem algum defeito
na madeira. Passávamos a tarde e noite jogando botão. As mães de nossos amigos
eram como se fossem nossas mães. Quando o diabo atentava íamos passear pelos
sítios da vizinhança roubando manga, caju, melancia, coco, enchíamos o bornal e
comíamos, alegres, sentados no meio fio do beco entre a Avenida e a Rua
Silvério Jorge. Aos treze anos quando a puberdade apareceu em forma de pelos e
cabelos junto com a libido, o assunto era mulher. Com 14 anos arranjei minha
primeira namorada no bairro do Farol. À noite, depois do jantar, subia de
bicicleta a ladeira do Farol, para passar duas ou três horas namorando junto
com a turma, para o pai da moça não desconfiar, em vez em quando segurávamos na
mão do outro, cheio de felicidade de menino.
Elizeth Cardoso, que faz centenário este ano, cantava um samba que
diz mais ou menos assim: Se eu
morrer amanhã... Não levo saudade... Eu fiz o que quis... Na minha mocidade...
Amei e fui amado... Beijei a quem eu quis...Se eu morrer amanhã de manhã... Morrerei
feliz, bem feliz.
Não, não, nem pensar em morrer, ainda tenho muita coisa a fazer,
acontece que fazendo um balanço de minha vida nesses oitenta anos, ela foi, e é
ótima, apesar de alguns percalços. Só a infância querida que os anos não trazem
mais, valeu a pena, sim senhor, nesses oitenta anos.
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