O Pequeno Príncipe Negro
Ninguém sabe de onde veio,
nem ele. A mãe o abandonou na Praça do Centenário quando Cícero não havia completado
oito anos, negrinho, chamava atenção sua figura bonita. Olhos pretos, vivos, cabelos
crespos. Sozinho no mundo, ficou a vagar pela cidade grande.
O menino enjeitado, triste
e assustado, perambulou durante dias pelas ruas de Maceió, dormindo sob
marquise, em praças, faminto, até que encontrou um bando de meninos
abandonados. Foi uma alegria tornarem-se amigos, entrosou-se com esses menores
que faziam ponto no centro da cidade, Praça Deodoro e arredores. Sobreviviam de
esmola, do que achavam no lixo, de roubos fortuitos, até pequenos assaltos.
Assim viveu Cicinho por anos nas ruas da cidade, abandonado pela sociedade,
pelos governos, sem escola, sem casa, sem documentos, duas vezes preso por
vagabundagem. Sua família eram os colegas de rua, de cola e de cruz.
Num dia de festa, o Brasil havia
vencido um jogo da Copa do Mundo, enquanto a cidade comemorava, Cicinho procurava
comida num container no bairro chique da Jatiúca, lixo de qualidade.
Alzira, moradora de um prédio, da
janela reparou a cena, comoveu-se, teve pena do adolescente catador, alheio à
festa. Agradou-lhe a silhueta daquele jovem moreno, cabelos crespos cumpridos,
vestes maltrapilhas, capa velha surrada, parecia o Pequeno Príncipe Mendigo. De
repente, ao acaso, ele olhou para a coroa, cumprimentou-a sorrindo. Ela
respondeu-lhe outro sorriso. Com a mão direita aberta Alzira deu um sinal para
ele esperar, desceu levando um bolo de chocolate na mão, ao aproximar, sentiu
uma forte empatia, um afeto maternal pelo jovem. Cicinho recebeu o bolo,
dividiu com amigos, comeram sentados no chão. A partir daquela dia, algumas
vezes na semana, o jovem cheira-cola aparecia em frente ao edifício, a coroa lhe
dava o que comer em um saco de papel pardo.
Alzira havia completado 41 anos no
dia que conheceu Cicinho, dizia para si mesma, ser um presente de Deus. Mulher
sofrida no amor, foi casada, sem filhos, por onze anos com um médico, abandonou-a
por uma aluna da Faculdade. Um trauma para Alzira, quarentona bonita, vistosa, charmosa.
Desde sua decepção amorosa, trancou-se para o mundo, mora sozinha, evitou namoro, sexo e amigas. Funcionária
pública, o trabalho ajuda sua existência
Sentia-se abandonada igual ao jovem
catador de lixo, ele veio preencher uma carência afetiva, alegrava-se ao dar-lhe
parte de sua comida, depois presenteou-lhe camisa, roupa. Com o passar do tempo
deu-lhe trabalho, mandou o barbeiro dar-lhe um trato, tornou-se uma espécie de
secretário para limpeza da casa, do carro, fazer compras e outros afazeres.
Cicinho toda manhã dava plantão em frente ao prédio de Alzira, à tarde caía no
mundo junto aos companheiros. Certo dia ela convidou-o a morar no quarto de
empregada, almoçava com a cozinheira.
Alzira ficou apegada ao adolescente, durante a
noite ensinava a ler, a escrever e contas aritméticas. Deu sorte, conseguiu
matricular o jovem no Colégio Marista onde os Irmãos têm cursos gratuitos para
os necessitados.
Cicinho é calado, casmurro por natureza.
Alzira descobriu, em conversa, seu sonho, uma prancha de surf. No natal ela presenteou-lhe
uma prancha, o jovem feliz da vida, danou-se a surfar na praia de Cruz das
Almas. Nunca abandonou os amigos, quando ia ao surf marcava com os companheiros
cheira-cola, eles pegando carona na prancha. Quando podia, arranjava comida
para sua turma. Cicinho tem consciência
que a sorte passou em sua vida. É generoso e solidário, embora o sentimento de
injustiça e desigualdade social seja forte em suas convicções.
Tornou-se um forte e belo rapaz,
espadaúdo, típico surfista. Atualmente estuda para vestibular de Direito, quer
ser um bom advogado e criar uma casa de abrigo a menores moradores de rua, seus
sonhos fizeram feliz Dona Alzira, como ele a chama.
Cicinho deixou a dependência de
empregada, dorme em quarto próprio.
Mostra sua gratidão, tem verdadeiro afeto e carinho por sua protetora
que mudou sua vida, lhe deu o que um jovem precisa, um lar, afeto e estudo. Está
aprendendo a dirigir, carro prometido se passar no vestibular. Para Alzira é
como se fosse um filho, aliás, mais que um filho.
Nas refeições divide a mesa com seu
protegido. Segundo línguas ferinas, sem provas, invencionice de quem não têm o
que fazer, durante parte da noite, divide também a cama forrada de lençol de
linho e travesseiros de marcela. Alzira anda na maior felicidade, apenas um
problema, administrar o ciúme das paqueras que dão em cima de seu belo Pequeno
Príncipe Negro.
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