sexta-feira, 28 de junho de 2013

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

O MANCO DA LEVADA



RONALD MENDONÇA
MÉDICO. MEMBRO DA AAL

A transferência dos pacientes do Santa Leopoldina para o Hospital Portugal Ramalho, no início da década de 50 do século anterior, marcaria a vida de algumas pessoas. O antigo nosocômio tinha cumprido sua missão.
Línguas ferinas – das quais nem o temido governador Silvestre Péricles escapava – asseguravam que o primeiro cliente seria o próprio chefe do executivo. É possível que os comentários guardassem uma certa coerência, posto que os impulsos de S. Exa. nem sempre eram enquadráveis num padrão razoável. Com efeito, aqueles que conviviam mais de perto tremiam com os rompantes governamentais, não obstante doce pendor para a poesia.
O fantasma do nazifascismo havia sido espantado, a ditadura Vargas chegara ao fim e a era dos Góis Monteiro começava a estertorar. Não era segredo para ninguém que Getúlio Vargas – até pender para o bloco dos aliados - flertara com Hitler, idílio que atingiria seu ápice com a extradição da lendária Olga Benário, grávida do mítico Carlos Prestes. Proclamada a paz, repartiu-se o mundo. Americanos e russos iniciavam a chamada guerra fria. Poucos sabiam o tamanho do genocídio de Lenin, Stalin, Beria etc.
Com todo esse caldo, não era difícil para os estudiosos da mente humana entenderem os diferentes tipos de delírios que passariam a povoar o universo psíquico dos pacientes. “Mensagens” cifradas eram recebidas através de imaginárias ondas de rádio (uma ferramenta em expansão), fortalezas aéreas sobrevoariam nossa recatada província e estudavam lançar bombas destruidoras... A dicotomia mundial invadiria a vida mental dos provincianos. Alguns sentiam-se vítimas de espionagem. Siglas de serviços secretos eram cochichadas. Uma bagaceira.
Com as limitações terapêuticas da época, a crônica psiquiátrica passaria a registrar os loucos dos bairros. Tipos populares, às vezes portadores de sobrenomes conhecidos, excêntricos multiplicavam-se. Bebedouro tinha seus loucos bem identificados. Jaraguá, Ponta Grossa e Levada, bairros de intensa inquietação comercial, eram aquinhoados com razoável número de psicóticos.
Os mais antigos comentavam sobre um deficiente físico da Levada. Maldosamente, era conhecido como o “manco da Levada”. Na realidade era um amputado. Uma tragédia de infância: ao tentar escapar da fúria de um professor caíra de mau jeito... Antigo integralista, apaixonar-se-ia pelo comunismo. Interlocutor assíduo de Marx, tinha um canal aberto com Engels. Na maior parte das vezes, ficavam os três juntos em intermináveis papos. A estudantada do Liceu Alagoano adorava “vê-los” sentados nos bancos da Praça Deodoro.
Não se descuidava dos alvos: Rockfeller, Churchill e o governador Silvestre Péricles. Caligrafia inconfundível, era um porco ambulante. Emporcalhava as paredes da cidade com idiotices. No dia em que rabiscou abobrinhas sobre a mãe do governador, dizia-se, foi encontrado dentro de um saco, lambido pela maré da praia do Sobral. Estava arrebentado: um olho vazado, várias costelas partidas e a perna sadia com dupla fratura. Com voz inaudível, atribuiria o atentado aos americanos.
O destino do manco da Levada é tema de infindáveis debates. Para muitos, morrera de disenteria no Portugal Ramalho. Há quem garanta, no entanto, que teria findado gloriosamente como ministro da Economia de Stalin, sendo sepultado com honras militares. Seu inconfundível esqueleto mutilado, para sempre, jazeria ao lado do de Lenin.

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