segunda-feira, 6 de agosto de 2012

UM TEXTO DE HOMERO FONSECA


O cheiro do livro

05 de Agosto de 2012 às 16:41 em por Homero Fonseca

Encontro Zé de Arruda, o ex-professor filósofo, à saída da Livraria Cultura no Recife Antigo, e ele exibia um brilho maroto no olhar.
– Dr. Fonseca – disse-me ele, resolvendo retornar comigo à livraria – acabo de fazer uma pesquisa de campo extraordinária.

Sentamo-nos em duas poltronas contíguas e ficamos a conversar baixinho pra não incomodar outras pessoas que liam absortas. Ele parecia excitado, pois sentara na beira da poltrona, voltando-se inteiramente para mim. Sua figura de urso polar estava mais desajeitada do que nunca.

Antes de começar a desfiar suas conclusões da tal pesquisa, Zé de Arruda achou de bom alvitre contextualizar sua posição.

– Sabes que sou um devoto do livro e mais não leio porque me falta verba. Desde menino fui fisgado pelo demônio da literatura, esse ser de infinitas faces.

Parece ter gostado da própria frase, pois fez uma pausa como que para saborearmos as palavras. Continuou, com os olhos fuzilantes:

– Comecei com os gibis, passei para o Tarzã literário de Edgard Rice Burroughs e daí para cair no encantamento pelo universo de Monteiro Lobato foi um passo.

Passou à nossa frente uma menina esplêndida, competentemente preparada para uma nevasca: boina, cachecol, suéter de lã, minissaia, botas e grossas meias negras a realçar os contornos roliços de umas coxas poderosas. O mínimo a que a temperatura cai por aqui no inverno, na madrugada, é 20 graus, mas a linda garota estava pronta pra o que desse e viesse. A guria não percebeu – ou fez que não – os dois coroas embasbacados por sua fulgurante passagem e se perdeu entre as estantes.

Arruda cofiou as ruivas barbas como soía fazer em tais ocasiões e retomou o fio da meada.

– Sempre fui traça de livro. De uns tempos pra cá, ando acompanhando o debate entre livro impresso versus livro digital. Inclusive estava em Garanhuns quando vossa excelência participou daquela discussão e leu aquela deliciosa crônica do Antônio Prata sobre a resistência da turma do papiro quando o livro foi inventado.

Aí deu uma sonora gargalhada, motivando olhares reprovadores dos caronistas de livros ao nosso lado. Tornou a baixar a voz.

– Pra mim, o que importa é o conteúdo. Essa bibliomania de alguns não passa de fetiche.

Assenti com a cabeça.

– Semana passada, viajei com Joca Souza Leão e Jairo Lima para Triunfo e me converti definitivamente ao... como é mesmo que chamam? E-book! Jairo me convenceu, mostrando as maravilhas do seu Ipad. Tem toda a praticidade do livro, a portabilidade, é muito mais leve do que a maioria dos catataus, permite sublinhar e fazer anotações, aumentar o tamanho das letras e ainda carrega uma biblioteca inteira! Extraordinário! Extraordinário!

E completou sorrindo, exibindo seus dentes curtos amarelados pelo fumo:

– Assim que a grana der, compro um tablete desses para mim. Ou então vou esperar que os preços caiam.

– É o mesmo que planejo – concordei.

Ele olhou ao redor, contemplando as dezenas de prateleiras onde se espremiam milhares de livros como um cenário do passado, quem sabe a ser tombado pelo Patrimônio Histórico. Então lembrou do início da nossa conversa.

– A turma que resiste ao novo... como se diz? ...suporte, depois de ver seus argumentos tombando um a um diante do avanço da tecnologia, agora se aferrou a um detalhe curioso: o cheiro do livro impresso. De repente, descobriram que o livro é um objetivo olfativo. A pesquisa de que te falei foi a seguinte: passei mais de uma hora sentado aqui na livraria, observando as pessoas. Não vi ninguém, absolutamente ninguém, cheirando um livro antes de comprá-lo ou pegar para ler. Muito menos comparando os eflúvios das obras.

– Livros... continuou quase murmurando – sempre os amei e os amarei, sejam de papel ou de silício. Mas voltando à vaca fria: antes da discussão atual, não lembro de ninguém jamais falando do cheiro como uma virtude intrínseca do livro. Imagina:

– A Odisseia é muito mais cheirosa que a Ilíada.
– Prefiro a fragância de um Shakespeare à de um Calderón de La Barca.
– Vou devolver esse livro à livraria pois ele não veio cheirando direito.
– Tão volumoso esse Bolaño e com tão pouco odor.
– Prefiro o cheiro da poesia ao cheiro da prosa.
– É nos livros fininhos onde estão os melhores perfumes.
– Respeito o olor de Clarice Lispector mas prefiro o aroma de Machado de Assis.
– A literatura formalista contemporânea não está me cheirando bem.
– Toda a literatura européia atual tem cheiro de mofo.

Começo a rir com as tiradas do meu amigo. Tivemos de sair da livraria para rir lá fora. Lágrimas vieram aos nossos olhos. Seriam apenas conseqüência das contrações do riso ou um réquiem por um monte de papéis repletos de letras?

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