A explosão de
eventos literários no Brasil: em 2015, serão mais de 300
Autores apostam que feiras de livros já substituem as bibliotecas no
papel do estímulo à leitura
POR MARIANA FILGUEIRAS
Autor
do clássico contemporâneo “Cidade de Deus”, livro que deu origem ao filme
homônimo, o carioca Paulo Lins tinha acabado de chegar ao Festival Literário de
Votuporanga (Fliv), no interior de São Paulo, em agosto passado, para dar uma
palestra. Num dado momento, enquanto brincava com um menino fantasiado de
palhaço numa pracinha da cidade, o moleque perguntou: “Sabe quem eu vou ver
hoje?”. Paulo respondeu que não sabia. O menino embarcou: “O moço que escreveu
aquele filme, ‘Cidade de Deus’. A minha professora vai levar. É meu filme
preferido, mas minha mãe não me deixa assistir a ele. Já vi 12 vezes
escondido”. Paulo sorriu tímido, deu tchau e seguiu para a palestra.— Quando o
menino chegou lá e percebeu que era eu o palestrante, o autor da história de
que ele tanto gostava, saiu correndo do meio da turma de alunos, subiu ao palco
e me deu um beijo. Foi muito emocionante — desmancha-se Paulo Lins, que em 2014
participou de mais de 50 encontros literários em várias cidadezinhas do Brasil.
— Houve outro evento desses, em Bragança Paulista, onde conheci quatro jovens,
e cada um me entregou um livro. Eram quatro moradores de favelas da cidade
dizendo que aprenderam comigo que favelado também podia ser escritor. Quando eu
teria a chance de conhecê-los, de saber que essas transformações de fato
acontecem? Fico muito feliz que encontros literários tenham se tornado uma moda
no país. Antes só havia eventos assim para o público rico, em escolas
particulares, centros culturais. Agora tem feira literária em tudo quanto é
cidade, e, como elas são gratuitas, todo mundo pode ir. Acredito que esses
encontros são hoje o principal incentivo à leitura no Brasil.É uma
contradição curiosa: num país onde a média de leitura é de apenas dois livros
inteiros por ano (segundo a última pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, do
Instituto Pró-Livro, de 2012), o número de feiras, festas, salões de leitura,
bienais, jornadas e festivais aumenta ano a ano. A última aferição do MinC
listava 257 eventos em 2013 — mais da metade (137) na Região Sul. Em 2014,
foram pelo menos 320, de acordo com levantamento feito pelo GLOBO.
PÚBLICO DE BLOCO DE CARNAVALA partir do
mês que vem, quando começa a temporada de 2015, a previsão é que o número de
eventos supere o do ano passado, apostam curadores e especialistas. O sucesso é
tanto que alguns encontros atraem como micareta: a feira Nacional do Livro de
Ribeirão Preto, por exemplo, cuja próxima edição será em junho, recebeu cerca
de 450 mil pessoas em 2014. O Bloco da Preta, capitaneado pela cantora Preta
Gil, arrastou pouco mais do que isso pelas ruas do Centro do Rio no último
carnaval.— Acho que
nos últimos cinco anos estive em cerca de 50 ou 60 eventos. Feiras com três
estandes apenas ou com uma centena deles — conta o escritor gaúcho Carlos
Schroder. — O que me deixa muito feliz é o surgimento de eventos no interior
dos estados e o crescimento das pequenas feiras. Mesmo as menores entenderam a
importância de ter debates e escritores em sua programação, e não apenas o
simples comércio de livros. Em algumas regiões, os eventos estão substituindo
as bibliotecas públicas no papel de juntar o leitor com os livros e os
escritores, porque têm um poder maior de comunicação e interação com a comunidade.
A verdade é que o livro foi praticamente expulso da vida pública brasileira.
Você não vê as pessoas lendo nas praças, nas ruas, elas carregam qualquer coisa
nas mãos, menos livros. As publicações perderam muita força como signo, como
símbolo. A imagem do livro se desgastou a tal ponto que precisamos de campanhas
e mais campanhas de incentivo à leitura no país. Mas as feiras e os festivais
estão recolocando o livro em pauta. Muita gente
atribui o sucesso desse tipo de evento ao exemplo bem-sucedido da Festa
Literária Internacional de Paraty (Flip), que caminha para sua 13ª edição.
Programada entre os dias 1º e 5 de julho, a Flip já levou à cidade autores do
porte de Eric Hobsbawm, Robert Crumb, Christopher Hitchens e Nadine Gordimer,
mudando completamente a percepção turística de Paraty. Muitas cidades imitam
até o nome do evento: depois da Flip, já surgiram a Fliporto, em Porto de
Galinhas (desde 2014, ela se mudou para Olinda), Pernambuco; a
Fliparanapiacaba, em Santo André, São Paulo; e outras tantas, como a Fliro, em
Ariquemes, Rondônia; a Flimar, em Marechal Deodoro, Alagoas; a Flivima, em
Visconde de Mauá, Rio de Janeiro; a Flimt, em Cuiabá, Mato Grosso; a Flap, em
Calçoene, Amapá; a Flipipa, em Pipa, Rio Grande do Norte; e a Flaq, em Aquiraz,
Ceará.
O jornalista
e agitador cultural baiano Emmanuel Mirdad conta que até o estilo colonial de
Paraty serviu de referência quando ele bolou uma festa literária para fomentar
o turismo do Recôncavo Baiano. Apesar de a cidadezinha de Santo Amaro parecer a
opção mais óbvia, por ser o berço de Caetano Veloso e Maria Bethânia,
principais referências culturais da região, ele decidiu implantar a experiência
na pequena Cachoeira — que não tem sequer uma livraria ou biblioteca.
—
Arquitetonicamente, a cidade é muito parecida com Paraty — comenta Mirdad, que
contou até com a consultoria de Mauro Munhoz, diretor-presidente da instituição
Casa Azul, organizadora da Flip, antes de inaugurar a Flica (Festa Literária
Internacional de Cachoeira), em 2011. — Hoje, a Flica é o segundo “São João” da
cidade. Não dou cinco anos para alcançarmos a Flip. Aqui é uma Suíça, não há só
palestrantes de esquerda, mas de direita também. Cabe Paulo Coelho, cabe Olavo
de Carvalho. Meu sonho é trazer um escritor como John Green para encher a cidade.
E a Flica paga bom cachê (diferentemente da Flip, em que os palestrantes são
convidados, mas não remunerados, na festa de Cachoeira os escritores recebem R$
3 mil) e sempre tem autores baianos em todas as mesas, para valorizar a cultura
local.
“SIGA O CAMINHO DO DINHEIRO”
Idealizador
e curador do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em Minas Gerais, o
jornalista e escritor Afonso Borges acredita que as feiras literárias só se
tornaram tão profícuas nos últimos anos por causa de uma alteração recente na
Lei Rouanet.
— Eu tenho
uma máxima desde meus tempos de repórter investigativo que é: “siga a grana”.
Desde que houve essa alteração na Lei Rouanet, no fim da gestão da Ana de
Hollanda, as feiras, festivais e afins, que eram enquadrados no artigo 26,
passaram a ser enquadrados no artigo 18, ou seja, tornaram-se 100% dedutivos.
Por isso, passaram a ser um investimento tão interessante para as empresas —
argumenta Afonso.
Vale lembrar
que, desde 2006, o BNDES já destinou mais de R$ 1,2 bilhão para financiar 26
projetos do mercado editorial —, e as festas literárias abocanharam boa parte
dos recursos.
Nesse “mar
de feiras”, compara Afonso Borges, o mais difícil é fazer um evento
consistente, que tenha conteúdo social e cultural, que provoque, de fato, o
incentivo à leitura.
— As grandes
feiras são absolutamente comerciais, forçam a entrada de estudantes para
aumentar o número de visitantes. O diferencial é uma boa curadoria. Um evento
literário desse porte muda a história de uma cidade. Mudou a história de
Cartagena, na Colômbia, mudou a história de Paraty. A literatura, ao contrário
das outras artes, tem esse poder: ela não é autocentrada, tem todos os assuntos
ao seu redor. Um evento literário pode falar de teatro, música clássica, meio
ambiente. Eu acredito muito no poder de uma boa palestra — diz Afonso,
lembrando uma história da qual nunca se esqueceu: em 1987, num dos eventos
literários que deram origem à Fliaxá, houve o lançamento do livro “1968: O ano
que não terminou”, do jornalista e colunista do GLOBO Zuenir Ventura. Vinte
anos depois, quando Zuenir voltou à cidade para outro evento, uma mulher se
aproximou dele e contou que havia comprado o livro da primeira vez e, graças à
leitura, tinha decidido completar sua formação, pois só possuía o diploma de
professora primária. Estava ali para agradecer ao autor pelo estímulo.
Zuenir, que
também se tornou figura fácil em eventos literários no país, faz sua avaliação:
— A leitura
no Brasil sempre foi uma obrigação chata, um dever, não um prazer. Nesses
eventos vejo crianças brincando com os livros, dessacralizando o objeto,
transformando numa coisa lúdica, prazerosa. Acho que é por isso que eles são
cada vez mais populares e, quanto mais se parecerem com eventos e não com
aulas, melhor. Numa época em que tudo é medido por tecnologia (telefone,
internet), esse olho no olho é fundamental.
BRIGAS E UMA QUASE TRAGÉDIA
Mas,
infelizmente, os festivais literários não contam só histórias de sucesso.
— Há no
Brasil muitos eventos picaretas, que são apenas para inglês ver. Captam uma
bolada e fazem qualquer coisinha, sem se preocupar com uma curadoria adequada.
Só que esses eventos costumam ter vida curta, pois não há mais espaço para
amadorismo, e o mercado ainda é pequeno, logo os picaretas ficam marcados —
defende o escritor Carlos Schroder, lembrando que “tem de tudo” nesse tipo de
evento. — Eu já vi autor quase sair no braço com leitor, mediador jogar água em
autor, gente que deixou de comprar comida para comprar livros. Eu mesmo
presenciei uma quase tragédia em junho, quando a cidade de Jaraguá do Sul
sofreu uma enchente terrível, bem nos dias em que realizávamos a Feira do Livro
do município: a água do rio chegou a exatos dois metros de 70 mil livros que
estavam nos estandes, e ficamos todos ilhados.
CURIOSIDADES DAS NANICAS-
A Feira do
Livro de Ribeirão Preto recebe mais de 500 mil pessoas anualmente
- A Festa
Literária Internacional de Cachoeira (Flica) acontece dentro de um convento
- A Feira
Literária do Distrito Federal acontece dentro de um shopping, o Taguatinga
Shopping
- Já existem
feiras especializadas em livros indígenas, e bienais exclusivas de livros
espíritas.
O evento
literário mais antigo do Brasil é a Feira do Livro de Porto Alegre, que já está
na 60 edição (a primeira foi em 1955)
- O maior
cachê já negociado por uma participação em festa literária no país foi ao
rapper e escritor Gabriel, o pensador, cuja proposta para ser o patrono da
Feira do Livro de Bento Gonçalves, em 2012, foi de R$ 170 mil. Houve grita e
polêmica, e o músico recusou o pagamento. Em média, um escritor recebe entre R$
1 mil e R$ 3 mil para participar destes eventos.
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