Sebastião Nery
BARBARA DE VARSÓVIA
Ao lado do hotel Bristol, em Varsóvia, na Polônia, havia um bar de nome inconfundível, Krokodila, com cara e fumaça de cave existencialista de Paris, naquela cidade arrasada pela guerra. A um canto do Krocodila, toda noite, tomava conhaque da Geórgia uma estudante de Arquitetura com cara de pecado, Barbara Slanka, que usava pulôver vermelho com gola rolê e calça preta. Em 1957, ia ficar uma semana em Varsóvia, fiquei várias naufragado nos olhos verdes de Barbara.
Meus minguados dólares de jornalista pobre não davam para acompanhar o conhaque de Barbara. No câmbio oficial, eram 10 slotes por um dólar. No câmbio negro, 200. Barbara me deu a pista: escada interna da universidade, depois das 10 da noite.
Fui lá, com o coração batendo de aventura e medo. Um homem careca, olho de gato assustado, com uma pasta grande, amarela, suja, cheia. Pegou meus dólares, acendeu uma lanterna, conferiu, amassou nos dedos, pôs no bolso. Abriu a pasta, tirou um pacote de notas grandes, pardas, úmidas, como se tivessem sido desenterradas. Me deu e sumiu.
GUETO
Peguei um táxi para voltar para o Krokodila. Varsóvia era uma cidade-martírio. Na madrugada branca, toda pingada de neve, naquele já quase inverno de 1957, o velho motorista, olhos azuis e cabelos fogueados ia me contando, em seu francês arrastado, coisas de sua vida. De repente, a praça imensa, quadrada, seca, vazia, absolutamente vazia, como um pedaço de deserto caído sobre a cidade e um discreto monumento negro ao centro.
– O que é isso, esta praça estranha?
– Aqui, foi o gueto de Varsóvia. Aqui, perdi pai, mãe, irmãos, filhos, minha família inteira. Aqui, vivíamos, nós, os judeus. Em 1943, cansados do cerco de Hitler, indignados com as perseguições, violências e assassinatos diários dos nazistas, explodimos. Fizemos um levante armado, um desesperado suicídio. Fomos arrasados pela superioridade militar dos nazistas. Sobramos poucos, pouquíssimos. Fui um deles.
O velho motorista parou o carro pequeno de quatro lugares, saltou, chegou junto ao monumento e passou as gordas e avermelhadas mãos sobre a pedra negra, como se alisasse o rosto dos pais, irmãos e filhos mortos.
HOLOCAUSTO
Tremi de frio e angústia na madrugada branca de Varsóvia vendo aquele homem encardido de desesperanças acarinhando a saudade de tudo o que ele foi e a vida dilacerou nas garras da violência, do radicalismo, do racismo. Conversei horas com Barbara sobre o Holocausto polonês. Ela contou as lágrimas de sangue da família, deu livros, revistas, documentos.
Cheguei ao hotel, comecei a escrever uma série de indignadas reportagens sobre os crimes de Hitler contra os judeus: Treblinka, à margem do Rio Buz, onde foram cremados os heróis do gueto de Varsóvia; Auschwitz, museu da loucura dos homens, onde 3 milhões de judeus franceses, holandeses, russos foram massacrados e queimados.
Os campos todos de ignomínia da barbárie racista alemã visitei e descrevi com a repulsa da minha juventude agredida. E guardei para sempre a convicção de que, na dura briga do homem pela existência, uma coisa não se justifica: a agressão pelo preconceito, a violência em nome do bem.
GUERRA
Uma noite, na véspera de vir embora, no quarto miúdo onde Barbara morava, já de madrugada, eu lhe pedi que bebesse menos. Barbara, apesar de tão jovem, sorriu um sorriso de guerreiro que já perdeu a batalha: – Meu avô morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Meu pai morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Eu sei que vou morrer numa guerra da Alemanha com a Rússia. O conhaque ajuda a esquecer isso. E vai ajudar a esquecer você.
No dia seguinte, Barbara ficou dando adeus lá na estação do trem para Praga, os olhos cheios de lágrimas, com seu pulôver vermelho, sua gola rolê, sua calça preta e os translúcidos olhos verdes.
Depois da queda do muro de Berlim e da União Soviética, voltei a Varsóvia para dizer a Barbara que ela não morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Não a encontrei mais.
ISRAEL
Quando vejo Israel massacrando a Palestina com um furor nazista, eu me lembro de Barbara e do velho motorista de Varsóvia. Desde 1948 Israel, Estados Unidos e a Europa não deixam criar-se o Estado Palestino e os expulsam de sua pátria para viverem aos milhões em acampamentos. Desesperados, os palestinos lançam foguetes contra Israel. E morrem à toa.
Ao lado do hotel Bristol, em Varsóvia, na Polônia, havia um bar de nome inconfundível, Krokodila, com cara e fumaça de cave existencialista de Paris, naquela cidade arrasada pela guerra. A um canto do Krocodila, toda noite, tomava conhaque da Geórgia uma estudante de Arquitetura com cara de pecado, Barbara Slanka, que usava pulôver vermelho com gola rolê e calça preta. Em 1957, ia ficar uma semana em Varsóvia, fiquei várias naufragado nos olhos verdes de Barbara.
Meus minguados dólares de jornalista pobre não davam para acompanhar o conhaque de Barbara. No câmbio oficial, eram 10 slotes por um dólar. No câmbio negro, 200. Barbara me deu a pista: escada interna da universidade, depois das 10 da noite.
Fui lá, com o coração batendo de aventura e medo. Um homem careca, olho de gato assustado, com uma pasta grande, amarela, suja, cheia. Pegou meus dólares, acendeu uma lanterna, conferiu, amassou nos dedos, pôs no bolso. Abriu a pasta, tirou um pacote de notas grandes, pardas, úmidas, como se tivessem sido desenterradas. Me deu e sumiu.
GUETO
Peguei um táxi para voltar para o Krokodila. Varsóvia era uma cidade-martírio. Na madrugada branca, toda pingada de neve, naquele já quase inverno de 1957, o velho motorista, olhos azuis e cabelos fogueados ia me contando, em seu francês arrastado, coisas de sua vida. De repente, a praça imensa, quadrada, seca, vazia, absolutamente vazia, como um pedaço de deserto caído sobre a cidade e um discreto monumento negro ao centro.
– O que é isso, esta praça estranha?
– Aqui, foi o gueto de Varsóvia. Aqui, perdi pai, mãe, irmãos, filhos, minha família inteira. Aqui, vivíamos, nós, os judeus. Em 1943, cansados do cerco de Hitler, indignados com as perseguições, violências e assassinatos diários dos nazistas, explodimos. Fizemos um levante armado, um desesperado suicídio. Fomos arrasados pela superioridade militar dos nazistas. Sobramos poucos, pouquíssimos. Fui um deles.
O velho motorista parou o carro pequeno de quatro lugares, saltou, chegou junto ao monumento e passou as gordas e avermelhadas mãos sobre a pedra negra, como se alisasse o rosto dos pais, irmãos e filhos mortos.
HOLOCAUSTO
Tremi de frio e angústia na madrugada branca de Varsóvia vendo aquele homem encardido de desesperanças acarinhando a saudade de tudo o que ele foi e a vida dilacerou nas garras da violência, do radicalismo, do racismo. Conversei horas com Barbara sobre o Holocausto polonês. Ela contou as lágrimas de sangue da família, deu livros, revistas, documentos.
Cheguei ao hotel, comecei a escrever uma série de indignadas reportagens sobre os crimes de Hitler contra os judeus: Treblinka, à margem do Rio Buz, onde foram cremados os heróis do gueto de Varsóvia; Auschwitz, museu da loucura dos homens, onde 3 milhões de judeus franceses, holandeses, russos foram massacrados e queimados.
Os campos todos de ignomínia da barbárie racista alemã visitei e descrevi com a repulsa da minha juventude agredida. E guardei para sempre a convicção de que, na dura briga do homem pela existência, uma coisa não se justifica: a agressão pelo preconceito, a violência em nome do bem.
GUERRA
Uma noite, na véspera de vir embora, no quarto miúdo onde Barbara morava, já de madrugada, eu lhe pedi que bebesse menos. Barbara, apesar de tão jovem, sorriu um sorriso de guerreiro que já perdeu a batalha: – Meu avô morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Meu pai morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Eu sei que vou morrer numa guerra da Alemanha com a Rússia. O conhaque ajuda a esquecer isso. E vai ajudar a esquecer você.
No dia seguinte, Barbara ficou dando adeus lá na estação do trem para Praga, os olhos cheios de lágrimas, com seu pulôver vermelho, sua gola rolê, sua calça preta e os translúcidos olhos verdes.
Depois da queda do muro de Berlim e da União Soviética, voltei a Varsóvia para dizer a Barbara que ela não morreu numa guerra da Alemanha com a Rússia. Não a encontrei mais.
ISRAEL
Quando vejo Israel massacrando a Palestina com um furor nazista, eu me lembro de Barbara e do velho motorista de Varsóvia. Desde 1948 Israel, Estados Unidos e a Europa não deixam criar-se o Estado Palestino e os expulsam de sua pátria para viverem aos milhões em acampamentos. Desesperados, os palestinos lançam foguetes contra Israel. E morrem à toa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário