Antes de 1964, achávamos tudo fácil de realizar; agora temos liberdade, mas não podemos fazer quase nada
De vez em quando eu falo sobre a ditadura militar e me sinto um dinossauro, pois a “dita” aconteceu há 50 anos. Porém, nestas últimas semanas se falou muito daqueles tristes dias militares, pela aproximação de seu aniversário. Ela voltou como a lembrança de um pesadelo ou para nos alertar sobre os perigos para a democracia, agora que temos um país conflagrado por paralisia ideológica e por incompetência generalizada. Antes de 1964, na Guerra Fria, no terceiro-mundismo, achávamos tudo fácil de realizar — nosso desejo bastava, mesmo que a utopia fosse impossível. Achávamos que poderíamos tudo; só não tínhamos liberdade. Hoje temos liberdade, mas não podemos fazer quase nada.
A injustiça e a boçalidade nos governaram por 21 anos. Foram espantosos a ingenuidade e o despreparo que embalaram o golpe naquela época. Nossa inocência política não imaginava quem seriam os inimigos. E, diante dos lutadores românticos, uma outra realidade aflorou, sinistra: os inimigos eram os rosários entre os dedos, os elefantes de louça, os bibelôs sem gosto, as famílias de classe média marchando. Das crendices ressurgia um Brasil puído, gasto, inatual, que sempre esteve ali e que achávamos obsoleto. O golpe de 64 despertou o Brasil medíocre.
Acordamos de um sonho para um pesadelo. O país mudou em 24 horas. E depois de 1968, jovens idealistas piraram, enquanto multidões de yuppies brotaram do falso “milagre”, enchendo o rabo de dinheiro, adotando o cinismo frio que hoje virou até uma “qualidade” executiva.
Tínhamos horror ao mundo real: um presidente anão que parecia um ET verde oliva, a cara de boçal do Costa e Silva, as gargalhadas de Yolanda, o rosto de vampiro deprimido de Médici, a estátua ereta e autoritária do Geisel e os colhões de Figueiredo, fazendo ginástica de sunguinha para o povo ver. Tudo nos dava horror, tínhamos de fechar os olhos.
E, como a política virou crime, cultivamos utopias pessoais, sexuais, místicas, drogadas. O espírito hippie não chegou aqui com flores e amor, mas com balas e porrada. A contracultura sem flores, o perigo de morte geraram ao menos uns sete anos de horror. Esse era o espírito do tempo. Do rosto sério e reflexivo dos guerrilheiros, passamos ao sorriso alvar meio bobo dos desbundados.
Não penso em uma anormalidade que nos assolou, mas sim na terrível “normalidade” a que nos adaptamos.
A ditadura acabou, voltou a democracia, somos todos livres e, no entanto, qual é a loucura de hoje?
Durante a ditadura, todos éramos o bem. O mal eram os milicos. Acabou a dita, e as “vítimas” (dela) pilharam o Estado. O futuro virou uma promessa de aperfeiçoamento de produtos, com uma velocidade que faz do presente um arcaísmo, uma espécie de passado “ao vivo” em decomposição. Temos hoje de lutar por quê? Qual o nosso ideal de hoje?
A ditadura nos trouxe o desencanto. Ela nos fez conscientes de nossa pequenez, da importância das mesquinhas coisas da vida. Depois da ditadura, passamos a desejar uma liberdade vagabunda, para nada, para rebolar o rabo nas revistas, uma liberdade “fetichizada”, transformada em produto de mercado. Ganhamos o mercado da liberdade.
O fracasso, a derrota, ganhou uma beleza nova — a beleza da desistência, a nobreza da vitimização.
Aqui no Brasil, temos a brutal resistência do atraso, do Mesmo. Estamos nos acostumando a isso. Pior que a violência é habituar-nos com ela. O mal ficou banalizado, e o bem, um luxo, quase um hobby. A desesperança parece-nos maturidade, do pessimismo estamos chegando a um fatalismo que passou a ser o lugar da sabedoria: “ah... é assim mesmo... não dá para fazer nada mesmo”. Ou então um otimismo reativo: o Brasil jamais afundará. Sem dúvida, mas poderá ficar cada vez mais disfuncional e irreversível. Depois das reformas de FHC, tudo o que estava pronto para decolar voltou atrás pela ignorância regressista do PT.
Hoje, vivemos na expectativa de que algo acontecerá, num tempo onde nada se soluciona. Vivemos uma cilada histórica, quando ninguém sabe como governar um país; o despreparo continua, com governantes de “esquerda” pensando com os mesmos parâmetros de 50 anos atrás.
Democracia é a palavra do momento. Nunca se falou tanto em democracia como ultimamente. Fala-se tanto nela talvez por medo de que ela se transfigure, se deforme. Fazem-se grandes denúncias do passado, para que não esqueçamos os horrores. É importante punir e lembrar, sem dúvida.
Mas democracia não pode ser definida apenas por ausência de ditadura, pelo que ela “não” é ou “não” foi. Nossa democracia está em dificultosa construção, frágil, difícil de entender por um país que já começou excludente e em que a República nasceu de um golpe militar.
Mas não adianta apenas buscar os inimigos que a destruíram no passado, quem torturou, quem matou.
É importante pegar os que sobraram das iniquidades cometidas, mas temos de pegar principalmente os inimigos da democracia de hoje, os que querem acabar com a liberdade de expressão, os que arrasam o país pela corrupção sistemática e pela busca voraz do poder pelo poder. Quem quer acabar com a democracia hoje, a exemplo dos fascistas da Venezuela, dos fascioperonistas da Argentina ou do Equador, são compatriotas loucos e mal informados, aqui. Baudrillard escreveu uma frase que tenho citado e que resume a loucura bolivariana que nos ameaça: “O comunismo hoje desintegrado tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem do seu modelo de funcionamento, mas através do seu modelo de desfuncionamento e da desestruturação brutal.”
O mal aqui está nos pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida. Aqui o grande canalha serve para camuflar os pequenos (que são os grandes) canalhas. O mal do Brasil não está na infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas; está mais na sua cordialidade. O mal nos engana, no Brasil. Aqui, o perigo é o Bem.
Isso é que nos ameaça e interessa e não mais as ossadas do Araguaia. Encanemos os fascistas d’antanho, mas cuidemos dos fascistas de hoje.
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