Carta a um amigo que
realizou o sonho
Caro
Antônio Torres. Você não imagina o que vi há poucos dias na periferia de São
Paulo, em São Miguel Paulista. Ali há uma grande praça chamada Morumbizinho.
Cheia de árvores. Dessas árvores pendiam cordões e na extremidade de cada um,
um livro. E na extremidade de cada livro
uma pessoa. Como se fosse um fio terra. As árvores, símbolos da vida, mantinham
os livros, igualmente símbolos de vida à sua maneira. Intrigou-me a cena.
Inácio Neto, um dos coordenadores da Semana Literária de São Miguel explicou: pela
manhã, em um ritual, os livros são pendurados nas árvores. Cedo as pessoas se
juntam à espera, correm e tomam “posse” de seu livro. Às vezes, ficam ali por
horas, com breves momentos de repouso, vigilantes. A certa altura, vem a
liberação, cada qual puxa seu livro e parte, amanhã haverá outro ritual. E depois, e depois.
Numa
semana em que tivemos imagens
repulsivas, aterradoras, melancólicas, como a da criança catando latinhas num
lixão fedorento ou a reportagemde total perplexidade sobre o “rei do camarote”,
a cena das pessoas agarradas aos livros que desciam das árvores me emocionou.
Há um Brasil diferente.Há um país desconhecido e há pessoas trabalhando para
muda-lo, caríssimo Torres. Esse Brasil você conheceu em centenas de viagens. Pena
que a mídia iginore a existência da Semana Literária de São Miguel Paulista. Numa região de 400 mil habitants, acontecem centenas de encontros, palestras, oficinas, exposições, teatro, canto. São
Miguel é o lado oculto da periferia,
ansiosa, criativa, querendo e oferecendo
coisas. A gerir isso uma organização como a Fundação Tide Setubal. Esta imagem
do ritual da colheita dos livros é que deveria ser expandida pela rede social,
para as primeira páginas dos jornais: os livros tirados das árvores.
Você,
Torres, eleito para a Academia Brasileira de Letras
com votação quase unânime, ficaria feliz ao ver o que vi. Aos 73 anos e com 18
livros publicados você, nascido no Junco, Bahia, chegou lá. O Junco mudou de nome, agora é Sátiro
Dias. A Academia era um sonho e você conseguiu.
Perdeu duas vezes, foi paciente. Perder
faz parte do jogo, de todos os jogos. Agora está lá ao lado de Lygia Fagundes
Telles, Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro com quem viajou
muito por esse Brasil, de bibócas remotas às capitais. Pena, Moacyr
Scliar se foi, era de nossa geração. Estivesse vivo, João Antonio estaria
feliz, ainda que, na sua encarnação limabarretiana, virasse a cara.
Falei em João Antonio porque ele, você e eu sempre fomos
unidos, fizemos infindáveis viagens por este Brasil. Os três vindos de
famílias humildes. Gostaria de ver João se
meter em um smoking para ir à sua posse, o que é de praxe. Ou ele chegaria de
chinelão a Academia e seria impedido de entrar?
Fiquei feliz por você, companheiro do jornal Ultima Hora nos anos 60. Quantos daquela época estão vivos para
comemorar?
Garotões, escondíamos nossas ambições, desejos secretos,
tínhamos medo de ser ridicularizados. Por inibição, medo de sermos gozados,
ficávamos em silêncio. Você foi para a
publicidade, mudou-se para o Rio. Anos mais tarde, em 1972,
espantei-me, quando nos encontramos no Center Três, em São Paulo e você
que me mostrou um livro, Um Cão Uivando
Para a Lua. Não vi o autor, perguntei:
-
É bom? Acabou de comprar?
-
Não, acabei de escrever e publicar.
Surpresa,
então você tinha se calado todos aquelas
anos? Logo depois, nos juntaríamos a João Antonio, formando o trio que percorreu
o país após a polêmica Semana Contra a Censura realizada no Teatro Casa Grande
no Rio de Janeiro em 1975. Numa dessas viagens passamos por Araraquara e meu
pai te elegeu amigo. “Um grande escritor,” dizia o velho Brandão. “Tem cheiro
de terra”. Ele prenunciava o Essa Terra,
enorme sucesso? Comovido, meu pai ouviu a história de como você, dos raros alfabetizados
do Junco, escrevia cartas para os que não sabiam ler nem escrever. E como lia as
respostas que chegavam. “Assim ele aprendeu, assim se aprende.” Meu pai,
estivesse vivo, teria me ligado para comemorar a sua eleição.
Você, meu amigo, tinha muita ternura por ele, assim como teve para com o
próprio pai, retratado em um livro, Adeus, Velho.
Publicado
em dezenas de países, agora você é acadêmico. Na cadeira de Machado de Assis e de Jorge
Amado. E o que me vem neste momento é uma fala sua no encontro do Paiol Literário de Curitiba, promovido
pelo jornal Rascunho: “Por que é que a gente escreve? Deve haver uma
falha dentro de nós. Por que o homem cria? Primeiro, porque ele não é capaz de
carregar um ser humano dentro dele. De gerar um ser humano dentro dele. As
mulheres não, elas não deixam de criar por causa disso, mas acho que, no homem,
há esse componente, essa diferença, essa falta. Ele não gera uma criação dentro
dele, então cria outras coisas. Tem um buraco dentro dele que é preciso
preencher. Tem que criar, inventar coisas e se entreter com isso. E, de outra
parte, você vê o seguinte: a literatura serve muito, muito mesmo, para a gente
se centrar. Enquanto você a está fazendo, está filtrando, sendo a esponja de
uma atmosfera que não é necessariamente saudável. E aí é que entra o escritor
como alguém incomodado, alguém desconfortável dentro do seu tempo. Todo
escritor mostrou o desconforto que sente durante seu tempo. Vá ver Proust e Dostoievski, e
tantos outros. Há um desconforto ali, terrível. Diante da sociedade, diante de
tudo.”

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