sexta-feira, 31 de maio de 2013

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

PARAI, COVEIROS, PARAI!

Ronald Mendonça
Médico e Membro da AAL


O menino Camelo, cujo pai tinha sido o coveiro do novo cemitério de Bebedouro, herdaria o gosto pelo mister paterno. Nascido lá pelos anos 15 ou 20, do século passado, Camelinho, como era conhecido, conduzido pelo pai, frequentava os saraus do Major Bonifácio Silveira, lendária figura do bairro. Logo cedo foi introduzido nos mistérios e na arte do coveirismo.
Estudou a liturgia do cargo. O pai foi taxativo: “uma das coisas menos recomendáveis num coveiro é ter ar de felicidade. Se quiser meu cargo tranque o focinho”. Obediente e disciplinado, ria pouquíssimo, mais das vezes sem mostrar os dentes, podres é bom que se diga. Espécie de noblesse oblige, concluiu que um bom coveiro tem dever moral e ético de ser triste. O próprio Major Bonifácio, sempre de bem com a vida, costumava repetir para os amigos mais taciturnos: “não me venha com essa cara de coveiro (ou de Camelo)”.
Camelinho tornar-se-ia um expert. Não se conformava com o semblante, cada vez mais amarelado. Sua roupagem lembrava um corvo. Como a ave, tornou-se curvado. Uma figura medonha para as crianças e sinistra para os adultos. No dia a dia, cruzar com este homem sinalizava mau agouro. Além do aspecto, o odor era terrível.
Foi introduzindo arte. Excelente pedreiro, selecionava os melhores tijolos; ele os queria sem defeitos. Afiava a colher com que iria misturar a argamassa. Treinava o melhor golpe para os recortes do tijolo. Sabia exatamente de quantas peças iria precisar. Fechava o óstio do túmulo meticulosamente.  Um Michelangelo.  Às vezes chorava.
Em seus delírios, considerava-se a estrela dos sepultamentos. Caprichando no visual, antevia prazeres.  Um deles,  era de ouvir discursos. Leitor de jornais, conhecia os melhores. Pelo nome do defunto, já sabia se ia pintar orador. Pausadamente, acariciava o tijolo, alisava a massa com a ternura dos enamorados, aguardando a frase: “Parai, coveiros, parai!”.
 Adorava particularmente dois: Guedes de Miranda e Rodriguez de Mello. Aprendeu muita mitologia grega (Caronte, Hades, Olimpo...) com Doutor Guedes, admitia. Até ouvir doutor IbGatto, achava que só os advogados sabiam fazer discursos.  Não foram poucas as vezes em que os soluços do coveiro, de tão altos, interromperam a fala do orador.
Aos sábados, altas horas da noite, esgueirava-se sombrio até o Ponto Final, quiosque frequentado pela boemia bebedourense. Quase escondido, trocava figurinhas com o “Tio Dito”, o barman. Entre um freguês e outro, inteirava-se dos moribundos mais graves, futuros clientes. Se padre Belarmino já aplicara a extrema unção, eram favas contadas...

Não raramente ficava meio alto. Tentava se aproximar de grupos. Desabafava. Achava-se merecedor daqueles momentos de lazer. Afinal, sua atividade era muito estressante. Ele sofria muito...   “Só muita vocação. Imagine, meu querido Dito, lidar diariamente com a morte é terrível”.

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