sábado, 15 de janeiro de 2011

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

                                      Lisboa - 1755


O MELHOR DOS MUNDOS

O Velho Testamento registra a fúria de Deus em pelo menos duas oportunidades: no Dilúvio, quando a humanidade foi salva graças à família do abnegado Noé. Precavido, o bom Deus ordenou que um casal de animais de cada espécie embarcasse na arca e assim garantisse o equilíbrio do ecossistema.
Numa outra manifestação de poder, Jeová despejaria sua ira naquelas pobres criaturas de Sodoma e Gomorra, condenados à morte pela opção sexual. De quebra, transformaria em estátua de sal a companheira de Ló, o sobrinho predileto do pai Abraão. Não se pode dizer que não houve prévio aviso. Tecnicamente, é inaceitável um Deus com subterfúgios.
Mas Yaveh não era só ameaças e castigos. Cuidou do seu povo na travessia do
Mar Vermelho e na caminhada pelo deserto. Na fome, deu o maná; na sede, o cajado do
velho Moisés brandiu duas vezes para tirar água do lajedo.
Mas a humanidade precisava de algo mais. E foi aí que chegou o Messias tão
esperado para nos salvar da ruína do pecado original, culpa tatuada no DNA da nossa
alma pelos inaceitáveis desvios morais de Adão e Eva. O Filho pregou o perdão, a
tolerância, o amor. Foi duro com os ricos, fariseus e poderosos: “É mais fácil um
camelo entrar numa agulha que um rico penetrar no céu”. Abominou o pecado, mas
acolheu o pecador.
Perdoou Madalena, a prostituta devassa, impedindo seu apedrejamento; fez
cegos verem a luz e aleijados abandonarem a muleta e a cadeira de rodas. Curou
leprosos. Mais que isso, ressuscitou mortos e, por fim, voltou para os braços do Pai.
A humanidade evoluiu e cortou a ligação direta com os homens. No século
XVIII, Lisboa era vítima de uma catástrofe que mataria milhares de pessoas.
Ironicamente, os tremores e o devastador tsunami que se seguiu ocorreram no Dia de
Todos os Santos, no exato instante em que boa parte da população prostrava-se em
orações nas inúmeras igrejas lisboetas. Apenas 20% da cidade ficariam de pé.
Naquela época se dizia que “se vivia no melhor dos mundos, sob as bênçãos
de Deus”. A desgraça que se abateu sobre a pequenina e religiosa capital portuguesa
ensejaria manifestações as mais diversas. A primeira delas, a mais cândida, assegurava
que a miséria não foi maior porque anjos acorreram.
Outras, nem tão favoráveis, concluiu-se que “o melhor dos mundos” era uma
fantasia dos aquinhoados. A segunda conclusão, mais dura de se ouvir, foi a que Deus
não seria tão bom quanto alguns queriam que fosse, além de não estar tão atento ao
destino dos viventes.

RONALD MENDONÇA É VENCEDOR DO 6º PRÊMIO NOTÁVEIS DA CULTURA ALAGOANA NA CATEGORIA CRONISTA. O PRÊMIO SERÁ ENTREGUE DIA 28 JANEIRO NA BARRACA PEDRA VIRADA.

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