MEMÓRIAS DE UM OITENTÃO (6)
Havia uma mistura de religiosidade e
brincadeiras divertidas. Iniciava no Domingo de Ramos quando se comemora a
entrada triunfal de Jesus em Jerusalém montado em um burrico. Seus discípulos
trouxeram-lhe um burrico puseram em cima dele suas
vestes, sobre elas Jesus montou. A multidão cortou ramos de oliveiras,
espalhou-os pela estrada, formando um tapete de folhagem para o Rei dos Reis
passar, em cima de um jerico. O povo acompanhava Cristo, clamava: “Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em
nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!” Ao entrar Jesus em
Jerusalém, toda cidade se alvoroçou. Perguntavam: Quem é este? E a multidão
clamava: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia.”
Assim aprendi nas aulas de catecismo no velho Colégio Diocesano. Essa
parte emblemática da história do Cristianismo ficou gravada em minha memória: a
marcha triunfal de Jesus em um jerico. Logo depois Ele foi traído e
crucificado.
Entretanto, para a juventude dos anos 50, o melhor do Domingo de
Ramos era a procissão saindo à tardinha da Catedral. Os colégios femininos
religiosos compareciam: São José, Sacramento, era um desfile das moças mais
bonitas de Maceió. Nós íamos com o objetivo quase pecaminoso de paquerar essas
meninas, andando em fila, contritas, rezando de terço na mão. Um sorriso, um
piscar de olho, valia a pena apreciar o arrastar da procissão.
O feriado começava na quinta-feira santa, a partir desse dia era
proibido comer carne. Dona Zeca, minha mãe, cozinhava as delícias da semana santa:
peixe à vontade, carapeba, arabaiana, cavala, camarão, siri, bacalhau, acompanhava
o feijão e arroz de coco, além da jerimunzada e o bredo. Até hoje pergunto por
que esses maravilhosos manjares são exclusivos da semana santa?
Na noite da quinta-feira
era vez de uma brincadeira perigosa. A meninada saía em bando, cinco a seis
moleques para “serrar um velho”. A
brincadeira de serrar velho é uma tradição europeia conhecida desde o século
XVIII. Reunia-se um grupo de brincalhões, diante da casa de um velho e serravam
uma tábua com muito ruído, muito choro, muito lamento. Os velhos serrados
irritavam-se com a brincadeira. Pela crença popular, um velho serrado não
chegava à outra Quaresma, teria menos de um ano de vida. A garotada cantava
alto acordando a vizinhança: "As almas do outro mundo, vieram lhe avisar
que deste ano o senhor não vai passar”. "Encomende a alma a Deus, que seu
corpo já não vale nada" e liam um bem humorado testamento em versos. Os
velhos ficavam irados. Certa vez levamos uma carreira do pai de um amigo na
Pajuçara, ele atirou em nossa direção com uma espingarda de sal. De outra
feita, Seu Pádua um velho ranzinza da Avenida da Paz, quando estávamos lendo
seu “testamento”, jogou um penico cheio de xixi e coco pela janela, fedendo,
tive que ir para casa tomar um demorado banho.
Durante a sexta-feira da Paixão parecia que o
mundo havia se acabado. As rádios tocavam músicas fúnebres. Era proibido ir à
praia, até sorrir não podia. As prostitutas fechavam o balaio; o bairro boêmio
de Jaraguá ficava deserto. À noite todos iam à igreja, para beijar os pés de
Nosso Senhor morto.
Finalmente
o sábado de aleluia. A meninada preparava um boneco de pano, era o Judas,
sempre com um nome de algum político ou alguma figura pública inimiga do povo.
Quando às 10 horas, os sinos da Igreja dobravam anunciando a aleluia, a moçada
caía de cacete malhando e queimando o Judas amarrado em um poste. Melhor do que
malhar um Judas, era roubar os Judas dos pivetes da vizinhança na noite
anterior.
Na missa do domingo da ressurreição, os padres
durante a homilia contavam a história como Cristo depois de morto subiu aos
céus.
Hoje
a ressureição é um espetáculo pirotécnico com atores globais, para se assistir
comendo chocolate, tomando vinho.
Essa
invencionice comercial, venda de ovo de chocolate, a comida dos Deuses, durante
a Páscoa, está definitivamente institucionalizada pela propaganda e o
consumismo. A meninada tem o ovo de chocolate e o coelho como símbolos da semana
santa. Um período mais apropriado à meditação, à oração, tornou-se a festa do
coelho e ovos de chocolate.
Os
marqueteiros não combinaram com a Igreja, tão conservadora nos assuntos sobre
sexo; pois, coelho é o símbolo de procriação, de fertilidade, de muitas
transas, e chocolate está na lista de alimento afrodisíaco. Portanto, os
símbolos da semana santa moderna, inventados pelo comércio, são apologias ao
sexo, o que acho ótimo, não deixa de ser uma evolução da Igreja.
Essas lembranças dá saudade, amo as tradições
de meu povo. Não troco minhas boas recordações da semana santa pelo ovo do
coelhinho, e olha que sou chocólatra.
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