quinta-feira, 24 de outubro de 2019

HISTÓRIAS DO VELHO CAPITA


JÚLIA & JÚLIO


      
                      Ana Júlia quando aparecia de biquíni na praia da Avenida Paz fascinava os homens. O pai, viúvo, funcionário público, esforçava-se para lhe dar conforto e educação. Ela estudava numa escola pública e não teve muita dificuldade em passar no vestibular de medicina. 
         Júlio Fonseca e Ana Júlia eram namorados, inseparáveis depois da praia, gostavam de conversar e tomar cerveja no Castelinho, um bar-restaurante instalado no coreto da Avenida. Na primeira cerveja, eles brindavam, batendo os copos, recitando um poema de Carlos Pena Filho:
     “São trinta copos de chope... São trinta homens sentados... Trezentos desejos presos... Trinta mil sonhos frustrados...”
       Os dois se entendiam, almas gêmeas, era tempo das jovens virgens antes do casamento. Naquela época houve um Congresso de Plantadores de Cana em Maceió. Ana Júlia foi trabalhar como recepcionista durante a semana. Todas as noites um senhor visitava o estande. Encantou-se com a jovem, alegre e sensual.
   Fazendeiro em Minas Gerais, separado, rico, o coroa solitário e bonito apaixonou-se. Ana Júlia até que simpatizou, ele prometeu o Céu, a Terra e o Mar se ela o quisesse. Quinze dias depois do Congresso ele retornou a Maceió, procurou Júlia. Conheceu o pai da jovem, queria casamento. Foi um reboliço na família. Um rico fazendeiro de 30 anos, apaixonado e louco para casar com uma jovem de 18 anos, cursando a Faculdade de Medicina.
      Quando Júlio soube pela própria namorada que iria casar, levou um choque, ficou nocauteado e mudo. Foi como se um feixe de flechas tivesse lhe atravessado o tórax, o coração. Descobriu que amava Júlia loucamente. Tudo muito de repente
      Na véspera da viagem, eles se encontraram na boca da noite no Castelinho. A namorada estava deslumbrante. Emocionados brindaram ao futuro. Quando se olharam nos olhos, os dois marearam. Ele não se conteve, sussurrou no ouvido de Júlia: “Lhe amo, lhe amo, lhe amo e nunca lhe esquecerei...”
    Os dois choraram abraçados. Quando refreou a comoção, Júlia abriu o coração: estava casando por necessidade, seu pai tinha câncer, o tratamento era caríssimo. O noivo prometeu levá-lo para um tratamento moderno em São Paulo. O pai, não imaginava a história verdadeira, deu sua vida batalhando por ela, merecia essa loucura pragmática. Tinha chegado sua vez de retribuir, mesmo sacrificando sua juventude.
     De mãos dadas, os dois namorados passearam mudos pela Avenida. Em certo momento, desceram à praia. Num ímpeto natural, abraçaram-se.
         Ele beijou e lambeu o longo pescoço da amada, enquanto ela sussurrava seus ais e num grito abafado pediu: “Quero você, quero você, me possua, entre em mim...”
    Os dois se uniram abraçados, beijando na boca, chegaram juntos ao êxtase, à apoteose. Ouviram pássaros marinhos cantarem àquela hora da noite.      
       Uma semana depois Ana Júlia casou-se com o fazendeiro apaixonado. Ficou morando na fazenda em Três Corações, numa enorme casa de 8 quartos, 4 salas, 5 banheiros. Sem condições de estudar medicina.

       Alguns anos se passaram, Júlio pouco viu Júlia quando ela passava em Maceió. Aproximou-se certa vez para dar os pêsames no enterro de seu pai. Havia certo afastamento, um tratamento respeitoso, ou medo deles mesmos.
      Nesse ano da graça de 2019, Júlio, coroa enxuto e alegre, bom folião, preparou-se para o carnaval e foi desfilar no Bloco da Nêga Fulô no domingo.
      Brincava entre casais amigos na rua, de repente tomou maior susto ao se deparar com uma mulher madura, exuberante que dançava e pulava. O coração bateu forte, feliz emoção ao reconhecer Júlia com o esplendor de sua maturidade e alegria, pulando e cantando as marchinhas de carnavais antigos. Abraçaram-se, em rápida conversa marcaram encontro no dia seguinte, segunda-feira de carnaval, almoçar no Restaurante Maré.
        Embora Júlio seja um cidadão correto, engenheiro, casado com três filhos, a fidelidade nunca foi seu ponto forte. No outro dia ao meio-dia ele estava sentado no deck da Lagoa Mundaú. Júlia desceu de um táxi com elegância e beleza, Aproximou-se sorrindo, deu um beijo em sua face, sentou-se a seu lado.
     Ela desabafou. Contou seu sofrimento com o marido mineiro, extremamente ciumento, violento, e raparigueiro, “qualidades” que só apareceram depois do casamento. Tem uma filha e uma neta, lindas. Certo dia, Ricardo teve um derrame, um AVC, ficou andando e falando com muita dificuldade. A cadeira de rodas tornou-se sua prisão.
    Foi uma liberdade para Júlia, mudou radicalmente sua vida. Antes de viajar para Maceió, chegou-se bem perto de seu desvalido esposo e comunicou que estava tirando férias, viajando à sua amada e bela terra. As lágrimas correram nos olhos de Ricardo. Ela não sentiu peso de culpa, nem arrependimento. Deixou uma enfermeira cuidando do marido
     
     Benedito, o garçom, encheu novamente os copos de cerveja, eles sorrindo, brindaram: “São trinta copos de chope... São trinta homens sentados... Trezentos desejos presos... Trinta mil sonhos frustrados...”
    Terminaram a tarde num motel. Felizes como vivessem ainda nos gloriosos anos da juventude. Soltaram desejos presos, realizaram sonhos frustrados.
  
    Naquela mesma tarde, em Minas Gerais, choveu muito. Trovoadas e relâmpagos caíram na distante fazenda, Ricardo dormia na suntuosa cama de casal. Só à noite a enfermeira percebeu: seu patrão abraçado ao travesseiro havia morrido.


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