A entrevista exclusiva que o comandante da Lava Jato, o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, concedeu a Fausto Macedo e Ricardo Brandt e foi publicada no Estadão de domingo 6 de novembro é um feito jornalístico e histórico. Em dois anos e meio de investigação e julgamento do maior escândalo de corrupção de que já se teve notícia, o jovem magistrado tornou-se o mais popular e admirado brasileiro contemporâneo e até então só tinha dado suas opiniões em palestras ou nos autos dos processos que julga. Nunca antes havia respondido a perguntas diretas de jornalistas como acaba de fazê-lo.
Nas duas páginas da edição dominical do Estadão ele não fez nenhuma revelação espetacular. Não respondeu, por exemplo, à pergunta que os repórteres lhe fizeram e dez entre dez brasileiros, seus admiradores ou detratores, gostariam de fazer: “O senhor vai mandar prender o ex-presidente Lula?”. Sua resposta foi lacônica: “Esse tipo de pergunta não é apropriado, porque a gente nunca fala de casos pendentes”. Ele também perdeu uma oportunidade de desmentir seus desafetos que o acusam de ser tucano ou filho de tucano ao responder à pergunta se votou no referido personagem. “É o tipo de resposta que eu não posso dar, porque acho que o mundo da Justiça e o mundo da política não devem se misturar”, disse.
Ao longo das respostas que deu apenas repetiu, de forma didática e até acaciana (ao estilo do Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz que só proferia o óbvio), verdades que precisam mesmo ser repetidas. Só isso é capaz de removê-las do lixo ideológico sob o qual têm sido soterradas na guerra retórica em que se debate o Brasil. Neste país da polêmica pronta, onde o argumento vale mais do que o fato, sua entrevista restaura a realidade oculta na ilusão e desmente a falácia da utopia pomposa sobre a rotina do dia a dia.
Em Ah se não fosse a realidade, sua recente crônica dominical publicada na última página da Folha Ilustrada, o poeta Ferreira Gullar descreveu essa situação. Ele narra casos do cotidiano em que adeptos do populismo lulopetista, derrotado no impeachment de Dilma no Congresso e massacrado nas urnas em outubro passado, apelam para a descarada desfaçatez de contestar a vida com o lorotário ideológico disponível. O autor ouviu de uma interlocutora esta pérola: “Na cidadezinha onde moro não há desemprego. Duvido muito desses números”. Lembrada de que os dados tinham a chancela autorizada do IBGE, à época em que Dilma ainda presidia o País, a pessoa não se deu por rogada: “E o IBGE não podia estar infiltrado por adversários do governo?”.
A negação do fiasco petista tem no trabalho de Moro uma de suas vítimas preferenciais. A citada ex-“presidenta”, com sua caradura de hábito, atribuía ao trabalho da força-tarefa da Lava Jato, composta por policiais e procuradores federais, a culpa pela crise financeira que devasta o Brasil, gerando quebradeira de empresas, desemprego em massa e inflação. Moro ressuscitou o Conselheiro Acácio para repetir aos repórteres o que a realidade clama: “O que traz instabilidade é a corrupção, e não o enfrentamento da corrupção. O problema não está na cura, mas, sim, na doença. O Brasil pode se orgulhar de estar, dentro da lei, combatendo a corrupção. A vergonha está na corrupção, não na aplicação da lei”. A verdade, a simples verdade, nada mais, nada menos do que a verdade.
A retórica tatibitate da ex-presidente afastada pelo Congresso deixou marcas na discursalhada de seu partido, o PT, e da esquerda em geral. Um dos argumentos mais comuns dessa gente tem sido apoiar o desempenho da Lava Jato, mas cobrar de federais, de procuradores e, sobretudo, do juiz acusações contra corruptos não filiados aos partidos que mandaram e desmandaram na República nos 13 anos, 4 meses e 12 dias antes do afastamento da ampla aliança de forças comandadas pelo PT e pelo PMDB. Trata-se de um argumento falso e hipócrita. Moro despacha-o com lógica e singela clareza. “A atuação da Justiça, do Ministério Público e da polícia não tem esse viés politico-partidário. O fato é que contra quem têm aparecido provas, têm sido tomadas as providências cabíveis”.
“Por que só ex-tesoureiros do PT estão presos?”, perguntaram, então, os repórteres. E Moro respondeu: “Considerando os casos que já foram julgados, há uma afirmação de que a vantagem indevida, a propina que era paga nos contratos da Petrobrás, era dividida entre os agentes da estatal e os agentes políticos que davam suporte à permanência daqueles agentes em seus cargos. Nessa perspectiva, quando isso foi de fato comprovado, é natural que apareçam nos processos exatamente aqueles agentes políticos que pertenciam à base de sustentação do governo”.
Na entrevista, o juiz defendeu as dez medidas de combate à corrupção apresentadas com 2 milhões de assinaturas de eleitores e o apoio entusiástico do Ministério Público Federal. A reputação que ele conquistou na sociedade não basta para tornar o projeto imune a críticas. Nem a emendas, que cabe ao Congresso adotar ou não. É claro que o desempenho de sua função, que permite a punição exemplar aos corruptos e justifica seu prestígio na sociedade, lhe dá autoridade para defender tal posição, mas isso não basta para que ela seja seguida, como ele gostaria, na possível lei que dela advier.
Da mesma forma, devem ser avaliadas suas posições críticas contra a lei do abuso da autoridade, que, por ordem expressa do presidente do Senado, Renan Calheiros, foi desengavetada no momento em que este protagoniza 11 inquéritos no aguardo de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O parlamentar goza, como todos os seus pares, da prerrogativa de foro, que Moro, com quem muitos juristas concordam e de quem muitos advogados discordam neste caso, prefere ver limitado aos chefes dos Poderes.
O ministro do STF Gilmar Mendes, sempre disponível para se pronunciar fora dos autos, chamou a sugestão do juiz de primeira instância de “simplista” e disparou, sem dó: “Para todo problema complexo, toda solução simples é geralmente errada”. Sua Excelência não pode ser acusado de originalidade. A frase original é: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”, da lavra do genial e impiedoso jornalista, sátiro, crítico cultural, poeta e acadêmico americano Henry Louis Mencken.
É do mesmo autor o aforismo que poderia servir de epígrafe para este artigo, para a coluna de Gullar no último domingo e para a entrevista de Moro resgatando a verdade dos fatos neste Brasil que virou atualmente o reino das versões e das utopias complexas, deselegantes e politicamente corretas: “Creio que é melhor dizer a verdade do que mentir, saber do que ignorar, ser livre do que depender”. O ministro Mendes talvez devesse incluí-la em seu estoque de frases feitas para pronto uso.
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