quinta-feira, 23 de abril de 2015

UM TEXTO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO - GAZETA DE ALAGOAS


ARROZ COM POLLO


Uma vez fui a uma feira de livros em Miami e acabei num jantar para os convidados latino-americanos, oferecido pela comunidade hispânica da cidade. “Arroz con pollo”. O único outro brasileiro no jantar era o Milton Hatoum. O amazonense Milton não só falava um espanhol perfeito como – o mais surpreendente e humilhante para mim, que como gaúcho me considerava um quase platino com pleno domínio do espanhol, que, se não era minha língua-mãe, era certamente uma língua-tia – compreendia tudo que os outros falavam. Eu não compreendia nada. Ou apenas o suficiente para notar que o assunto principal dos presentes era Cuba, de onde a maioria era natural. Pareciam falar com uma mistura de nostalgia e rancor, mas foi só uma impressão que não confirmei com o Milton. O que me espantou foi minha incapacidade de entendê-los. Não falar o espanhol não era nada, eu mal falo português. Mas, durante todo o jantar, só entender “más arroz?” era desconcertante. Eu estaria bloqueando o que ouvia? Me sentindo tão deslocado, ali, que me recusava a entender o que diziam?

O espanhol da Espanha não é o mesmo falado nas Américas e o espanhol (por exemplo) argentino não é igual ao mexicano. Cada fala espanhola seguiu seu curso a partir da vertente comum, mas aquele espanhol dos exilados cubanos era de uma estranheza extrema, ao menos aos meus ouvidos. Era como uma língua que tivesse se deteriorado ao ponto de virar outra, só compreensível pelos seus usuários. E pelo Hatoum. Me ocorreu que, na apreciação do que aconteceu em Cuba depois da revolução do Fidel, as opiniões tinham se diversificado tanto que pareciam línguas diferentes. A narrativa inicial da revolução fora num espanhol puro, que ninguém discutia: um governo tirano e corrupto derrubado por jovens idealistas dispostos a fazer uma sociedade limpa e justa. Uma narrativa clássica. Mas, com seus primeiros atos, Fidel e seus companheiros começaram a divisão das línguas, que foram se distanciando com o tempo e hoje são idiomas estanques: o dos que nunca perderam a admiração pela experiência cubana, o dos que se desiludiram um pouco ou completamente e o dos que não perdoam o que Fidel fez, com Cuba e com eles. Este é o espanhol falado em Miami. Entre os que falam os dois tipos de espanhol cubando, nenhum consenso é possível. Hoje, quando penso naquele jantar, fico imaginando o que diriam do Barack Obama, na língua dos exilados, entre uma e outra garfada de “arroz con pollo”, depois da sua reaproximação com Cuba.

Miami foi o mais perto que já cheguei de Cuba, mas minha filha Fernanda esteve lá, há alguns anos. Numa festa, conheceu o irmão mais velho de Fidel, Ramon, que foi muito simpático. Conversaram sobre a novela brasileira que fazia sucesso na TV cubana, na época, e dom Ramon disse que daria qualquer coisa para saber como terminava “Vale tudo”. E comentou: “Como és mala Maria de Fátima!”. Os dois não tiveram problema de língua. Falavam Globo.

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