Como boa paulistana, dona Zélia adorava uma praia. Mar, areia, sol, sal eram com ela mesma. Gostava de pescar, catar marisco, nadava como uma Esther Williams, melhor dizendo, como uma Oxum. Já seu Jorge, preferia olhar a praia de dentro de casa, a uma distância razoável. Filho de Oxóssi gosta de mato, e este nem nadar sabia. De pele muito alva, uma pequena exposição ao sol o deixava todo vermelho, se coçando. Decididamente não curtia um programa à beira mar.
Foi natural que a primeira reação à proposta de mamãe de uma casa na praia fosse negativa. Carlos Bastos, o pintor e amigo, veio entusiasmado com a planta do novo condomínio aberto na orla, logo depois de Itapuã, perto de Stella Maris, a Pedra do Sal. Grandes terrenos sobre o mar, distante dos olhares de turistas e passantes, local calmo, bom para se isolar e escrever romances.
Estes eram os argumentos de mamãe, que apaixonou-se a primeira vista pelo local. Pelé comprara um (onde nunca construiu ou frequentou), a casa de Carlos já tinha paredes, breve ele e Altamir se mudariam. Recomendavam o terreno da esquina, So únicos vizinhos de lado seriam eles.
Papai também gostou muito, apesar de não dar o braço a torcer. Argumentava que não queria entrar em nova construção, os anos da reforma da casa da Rua Alagoinhas tinham “comido minhas carnes”, como dizia em tom dramático, mas rindo. Mamãe sugeriu que procurassem uma casa pré-fabricada, afinal não careciam de luxos, nem decorações, apenas um lugar confortável para passar fins de semana. Enquanto dona Zélia se esbaldaria furando ondas, fazendo castelos de areias com os netos, seu Jorge poderia escrever. No Rio Vermelho andava impossível, todo o tempo sendo perturbado por grupos de turistas que desembarcavam de ônibus, querendo conhecer a casa, o mestre, um carinho enorme, mas que atrapalhava o trabalho do escritor. A idéia agradou. Mesmo sem as tecnologias atuais, eles foram pesquisar o que havia de bom, partiram em busca de algo que viesse pronto.
Tanto procuraram que encontraram. Não lembro o nome da empresa escandinava que produzia as peças em fibra para casas modulares, nem quem a descobriu, lembro bem que o representante na Bahia era o arquiteto André Sá, que fez um projeto lindo e com a simplicidade praiana que o casal queria .
Um dia a casa ficou pronta. Muita terra veio para cobrir um tanto da areia do quintal, pois o casal era jardineiro por natureza, e mamãe, boa italiana, ainda queria uma hortinha que produzisse as verduras preferidas. Altamir e Carlos, vizinhos instalados há algum tempo, duvidavam que alguma coisa vingasse por ali, fora coqueiros, cajueiros, cactos e umas plantinhas rasteiras, roxinhas, que apaixonaram mamãe.
-- Vocês dizem que aqui não dá nada, mas olhem que flor mais lindinha esta, eu encontro até na praia, disse mamãe ao casal de amigos.
-- Ah, mas isso é Xoxota, é mais que praga por aqui!
-- Xoxota? Mamãe se espantava.
-- Olha bem, Zélia, é igualzinha uma..., Altamir explicava, conhecedor.
Carlos fez um muxoxo, não se conteve.
-- Igualzinha, é? E desde quando o senhor conhece? Nunca viu nenhuma...
-- Vi sim!
-- Hum... Qual?
-- Aquela Índia pelada, que você pintou, enorme! Vi tudinho.
E todos morreram de rir.
Seu Jorge estava fisgado para sempre. Além dos vizinhos de porta, Calá e Auta Rosa, senhores do reino de Itapuã, moravam ali pertinho. Vinícius também morava nos arredores, e veio depois Juca Chaves. Outras casas iam sendo construídas. Bem perto, sete casas geminadas, ali adiante uma grandona, de esquina onde foi morar Arthur Sampaio (mano de minha inesquecível Maria). A comunidade de Itapuã crescia a olhos vistos.
Um dia papai chamou Carlos, precisavam resolver uns problemas. Os Amados estavam querendo passar uma boa temporada na casa nova, tão gostosa e sossegada, mas era preciso receber correspondência ali. Ora, a rua não tinha nome nem a casa tinha número.
-- Eu acho que vamos ter que providenciar isso, amigo. Que nome gostaria para nossa rua, afinal, você e Altamir foram os primeiros moradores, têm a primazia na escolha.
-- Vocês sabem que tenho paixão por lagarto. Que tal Lagarto Azul?
-- Rua do Lagarto Azul!! Disse dona Zélia com a voz empostada. Lindo!
Carlos continuou:
-- E queria que minha casa fosse a número 500. Adoro esse número.
Papai riu muito, aquela ruazinha de poucas casas com uma 500. Pegou o pião na unha:
-- A nossa vai ser 1000. Tá bem, Zezinha?
-- Maravilha! Rua do Lagarto Azul, 1000. Maravilha!, repetiu mamãe.
A Prefeitura acatou a decisão dos ilustres moradores e pediu que nomeassem as demais ruas. Eles não se fizeram de rogados. Nasceu a Rua da Poesia, a Rua das Sete Casinhas e tantas outras.
Muitas temporadas passamos na Pedra do Sal. Foi esta a casa que recebeu meu irmão Luiz Carlos e toda sua família, na primeira vinda à Bahia. Parecia um sonho, a família reunida pela primeira vez, todos os netos juntos nas brincadeiras praianas.
-- Cuidado meninos, que o mar está forte.
E veio Fernando Sabino. E veio Lina Wertmuller, com Bini, para colocar de pé a produção do filme Tieta do Agreste. Mas antes um banho de mar, que ninguém é de ferro. Foi o melhor lugar para receber Matilde Urrutia, em seguida à morte do compadre Pablo Neruda, muita gente veio para vê-la, inclusive o compadre Dias Gomes. Foi tanta, mas tanta gente que sentou na varanda, tomou água de coco (com ou sem uísque),riu, conversou. Nela Moustaki compôs canções, que depois foram fazer sucesso nas Oropas.
Era mais uma casa de amigos, e da criançada. Jogava-se o jogo do dicionário, com seu Jorge capitaneando a mesa. Um divertimento só.
A horta deu beringelas e abobrinhas, além dos quiabos e jilós ( paixão de mamãe e minha!), manjericão para o pesto, temperinhos e pimentas de vários tipos e ardores. Dona Zélia mandou uma cestinha com a imensa beringela, que trazia laço de fita no cabo, para os vizinhos. Dias depois chegou um quadrinho da “Berinzélia”, linda natureza morta de seu Carlos.
Até a função de refúgio para o escritor, a casa o exerceu impecável. Por algum tempo encontrou a paz necessária para transpor ao papel sua criação. Mas não durou para sempre.
Um dia parou um ônibus de turistas na porta. Vieram correndo avisar. Papai ficou quieto, estava na sua varanda escrevendo, ali ficou.
-- Jorge Amado (pronuncie Ror-rre), salga, sabemos que está ahí.
Eram argentinos. Saltaram deram a volta na casa, que não tinha muros, encontraram o escritor escrevendo. Parou seu trabalho, foi falar com cada um, posar para fotos... A partir daí acabou a paz.
Acho que foi o apartamento da França quem acabou com a festa da Pedra do Sal. Meus pais passaram a dividir o tempo entre Rio Vermelho e Paris.
Morei na casa por dois anos, de 94 a 96, isto é, de quando voltei de Paris para o Brasil até o meu divórcio. Depois ela foi vendida.
Sinto muitas saudades.
Para não terminar esta crônica na saudade, uma historinha engraçada:
Na frente da casa de Carlos e Altamir tinha um busto em gesso de Molière. Um dia chegaram uns turistas franceses, e já se sentiram identificados com o autor famoso.
-- C’est Molière! , um disse.
O empregado que estava bem ali, regando as plantas, se precipitou:
-- Não é mulié, não, é homi. Tem esse cabelão todo, mas é homi. Foi seu Carlos que disse...
Bom domingo a todos, o meu será maravilhoso, festejando os 11 anos de meu neto Nicolau..
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