sábado, 20 de julho de 2013

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA


ABISMO QUE CAVASTE COM TEUS PÉS
RONALD MENDONÇA
Médico e Membro da AAL

Num dado momento, pretendeu-se reformular o curso de medicina. Embora pouco inclinado a reuniões “de trabalho”, geralmente inócuas, ou – muito pior - de cartas marcadas, senti-me impelido a participar. Afinal era um dos coordenadores de disciplina. Com quase trinta e cinco anos de magistério permiti-me inferir que já estava meio tarde para começar a utilizar portfólios e outros que tais.
Três anos após ter me despedido e aberto caminho para novos talentos, continuo a pensar na medicina como ciência e arte. O filósofo Kant, a propósito, teria dito que a doutrina sem a experiência é nula enquanto a experiência sem o conhecimento é cega. Mestre Ib Gatto filosofava com os pés na terra ao repetir, em diversas ocasiões, que reconhecia no ensino e na aprendizagem da arte de Hipócrates três etapas: 1) Ver: 2) Ajudar; 3) Fazer. Fora disso é tentar reinventar a roda.
O fato é que das enjoadas reuniões chegou-se a conclusões geniais. Antes de tudo, pariu-se que o alvo da faculdade seria primordialmente formar cidadãos. Infere-se que Medicina que é bom, o cara pode até não aprender, mas jamais dali sairá um cidadão de segunda classe. (Isso foi dito e repetido várias vezes). Que adiantou nossa “rebeldia” e falar que a cidadania é um processo que começa intraútero e nunca está completamente construído, ainda que se viva 150 anos? Cidadania é apenas burnida na Academia com o exemplo dos mais antigos. Medicina e cidadania, é claro, não são excludentes. O que parece fora do lugar é a priorização do abstrato – muitas vezes carregada por mesquinhas desforras dos professores.
Não menos surpreendente foi a criativa ideia, até hoje em voga, de que as faculdades de medicina devem ter como objetivo formar cidadãos, digo, médicos, para o Sus. Na realidade, “para as necessidades do Sus”. É o estupro da Academia. Não lembro das vezes em que perguntei aos mentores dessas transformações se eles tinham vivências em tratar pacientes do Sus. Antecipo a resposta: “Paciente de Sus é bom no papel”.
Dispensável comentar cotas para gente sem méritos. Dez anos de imobilidade é prova inconteste da inépcia governamental. Nada mudou no ensino médio público, a um nível razoável, para competir com as escolas privadas. Se é que foi isso que motivou as cotas.
Submissa, a Ufal (não foi a única) ainda cederia às imposições dos companheiros ao deixar-se incluir no rol das federais para vestibular unificado, que tem o SISU como central de inscrição. A leniência revelar-se-ia particularmente cruel. Guardadas as proporções, não seria exagero afirmar que aluno de Alagoas estudando medicina na Famed é pé de cobra.
Acuada, antipatizada, sem credibilidade, Roussef, diz-se, treme de medo de novas vaias. A esperança é uma indulgência especial do papa Francisco para blindá-la da hipocrisia desses canalhas pequeno-burgueses. Fala-se até em conversão e confissão.
Inflação indócil, drogas e corrupção no meio da canela, desemprego... Cuba balançando... E as pessoas na rua... Com o fiasco da constituinte e do plebiscito, é taboa de salvação criar marola em torno de um tema. Dois anos a mais no curso médico é uma polêmica perfeita.
Se o projeto passar, não há de que se reclamar. É o abismo que vinhas cavando com os pés.

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