UM TEXTO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO
COMO ANDAR NAS PEDRASAs casas e os sobrados antigos de Paraty muitas vezes são fachadas parabelos interiores modernos. Você literalmente pula de século quando entra por uma das suas portas. O mesmo não acontece com as ruas da zona histórica, que continuam como eram nos séculos 18 e 19, calçadas com pedras irregulares de vários tamanhos que obrigam o pedestre a andar com muito cuidado. É perigoso pisar desatento no passado, ainda mais depois de uma certa idade.Quem já foi várias vezes à magnífica Festa Literária Internacional de Paraty acaba desenvolvendo o que se pode chamar de uma ciência de andar nas pedras. Nas minhas primeiras idas à Flip eu precisava escolher entre olhar para o chão e cuidar onde pisava e olhar ao redor para ver quem passava perto, geralmente um grande nome da literatura mundial que também dava mais atenção a não torcer o tornozelo do que a qualquer contato social. Com o tempo, desenvolvi uma técnica para fazer as duas coisas simultaneamente: não cair e não perder a rica procissão humana à minha volta. Piso em uma, duas e três pedras, paro e olho em volta. Uma, duas, três pedras e “Olha o Ian McEwan!” Umas, duas, três pedras e “Olha o Stephen Greenblatt!”.Também descobri uma coisa que os neófitos em Flip e os turistas não conhecem: as capistranas. O calçamento das ruas do centro histórico foi feito na forma de calha rasa, sendo a parte mais baixa o eixo central da rua. Neste foram usadas pedras mais compridas e uniformes e mais alinhadas do que as outras. São as capistranas, que formam uma espécie de trilha à prova de tropeções. Pelo menos para nós, os iniciados.E não deixa de haver uma certa justeza poética no fato de alguns dos maiores escritores do mundo terem que andar de pedra em pedra, escolhendo as mais aparentemente firmes e seguras e evitando as mais traiçoeiras. De certa maneira, é o que eles fazem quando escrevem. Vão escolhendo as palavras certas para chegar onde querem, evitando a queda e o vexame público. Paraty, para quem anda pelas suas ruas, também é um exercício de estilo.E no fim todas as pedras levavam à tenda das mesas dos escritores, onde os prazeres deste ano se repetiam, como o de ouvir o Zuenir ler um trecho do seu novo livro Sagrada Família e ver Shakespeare e Drummond dividirem as honras de poetas da festa.
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