DEVIA
TER DADO
- “Eu devia ter dado.” Ritinha
confessava, em soluços, abraçada à amiga Miriam, sentadas num banco do
cemitério Parque das Flores. Era quase meia-noite o corpo de Afrânio estava
sendo velado pelos amigos e parentes.
Afrânio aparentava boa saúde,
caminhava diariamente às 17 horas pela orla. Naquela tarde Afrânio, andando, sentiu
um mal estar, dor no peito, caiu no chão. Socorreram, colocaram-no em um taxi,
avisaram à Paula, sua esposa, levaram o infartado ao Hospital, ao chegar estava
morto. Foi uma choradeira entre parentes e amigos, os dois filhos que moram em
São Paulo pegariam o primeiro avião. A notícia correu rápida no Facebook, postaram
o laço preto, a foto e as notícias fúnebres elogiosas. “Alagoas fica menor. Morre
Afrânio Cavalcanti grande empresário, o velório será o Parque das Flores e o
enterro às 17 horas de amanhã.” Afrânio era muito querido, gentil, trabalhador,
bem casado, tinha apenas um defeito, gostava de um rabo de saia. Teve vários
casos, mas nunca se prendeu a alguma de suas aventuras. A esposa minimizava
esse defeito para viver bem.
O Parque das Flores logo
ficou repleto, as duas amigas Paula e Ritinha abraçadas diante do caixão choravam
em desespero aquela tragédia, os amigos consolavam a viúva. Foram 31 anos de casados,
eles viviam em harmonia possível. Quando os filhos foram para o Sul estudar e
ficaram por lá, o casal ficou mais amigo, precisavam um do outro. Paula chorava
aos prantos diante do marido inerte no caixão, sabia que nunca mais teria seu
bom humor, seu carinho e as noites gostosas de amor, afinal, Afrânio era sábio
de cama.
Deram um calmante à Paula,
ela deitou-se nos aposentos do velório. Ritinha acordada aguentou no salão
olhando para o defunto, estava chocada, desesperada, arrependida, havia
descoberto naquele momento doloroso que amava Afrânio, marido de sua melhor
amiga, sua cabeça pensava em perda, lamento e traição, quando apareceu a amiga Miriam
convidando-a a um passeio pela alameda iluminada do cemitério. Sentaram-se no
banco embaixo de enormes pés de eucaliptos. Foi naquele momento que ela
desabafava junto à amiga.
- ”Eu devia ter dado a ele.”
Continuou abrindo seu coração para Miriam.
- “Eu e Paula sempre fomos
grandes amigas. Depois que me separei do Arnaldo, comecei a sair com o casal,
Afrânio cheio de bom humor vivia me arranjando namorado, até que dei algumas
escapulidas com alguns. Ano passado na praia de Paripueira em um passeio na
piscina natural, eu estava segurando a jangada com o corpo dentro d’água, de
repente, senti um corpo junto ao meu por baixo d’água, entrelaçou-me entre as
pernas, deu-me uma gostosa excitação, olhei nos olhos de Afrânio e balancei a
cabeça negando amavelmente. Aquele momento me agradou confesso, eu adorei. Dias
depois me encontrei com Afrânio no Shopping, ele convidou-me para um sorvete.
Sentamos, ele perguntou se eu acreditava que um homem podia amar duas mulheres?
Porque me amava e era tarado por mim. Já pensou? Eu quase sessentona. Mandei
que ele se aquietasse, já não era mais menino, não ligou, continuou a conversa.
Fez-me a proposta indecente. Por que não um encontro em vez em quando num
motelzinho gostoso? Não precisava Paula saber.
Eu saí do Shopping excitada com a proposta, porém,
havia uma amiga no meio do caminho. Afrânio quando podia, dizia-se apaixonado,
eu resisti durante esse tempo todo. Hoje eu o vendo morto, inerte, a vida acabada,
fiquei num profundo sentimento de perda e de arrependimento. Eu devia ter dado
a ele, Miriam. Agora Inês é morta”.
Retornaram ao velório, Ritinha
procurou Paula, ela estava sozinha no quarto, sentada na cama, deu duas batidas
no colchão com a mão, convidando a amiga sentar-se. Abraçaram-se. A viúva puxou conversa.
- “Minha querida amiga, Afrânio
gostava muito de você, muito mesmo, eu não sentia ciúme. Ele lhe tinha um carinho
especial, eu percebia. Agora que tudo acabou, diga-me, até por curiosidade, continuarei
sua amiga seja qual for a resposta. Vocês transavam?”.
Deu-se um momento longo de
profundo silêncio.
- “Paula vou lhe contar a
verdade, fui-lhe amiga fiel com muito esforço. Afrânio tentou, tentou muitas
vezes, insistente. Confesso várias vezes tive vontade, só não dei, para não lhe
trair”.
- “E eu pensava que vocês
transavam. Você devia ter dado, o bichinho queria tanto.” Disse Paula sorrindo,
beijando a testa da amiga.
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