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domingo, 23 de agosto de 2015
TEXTO DE LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO - GAZETA DE ALAGOAS
NOTA LONGA
A Suíte para Orquestra nº 3 em Ré Maior de Johann Sebastian Bach é famosa pela sua ‘ouverture’ retumbante, mas principalmente pelo belo ‘air’ que se segue. ‘Air’ vem do francês e pode ser ‘air tendre’, ‘air gai’, ‘air noble’ etc. O ‘air’ da suíte do Bach é definitivamente ‘tendre’. E começa com uma única nota prolongada, tão longa que – penso eu – nunca tinha sido ouvida antes de Bach. Os ouvintes da época devem ter ficado atordoados com aquela nota que nunca acabava e se perguntado o que herr Bach estava inventando. Bach seguia as estritas convenções da música barroca, mas sua obra está cheia de novidades como a da nota espichada do ‘air’. Cheia de liberdades pequenas, mas revolucionárias.
Com alguma ginástica mental, pode-se dizer que Orson Welles fez coisa parecida com a nota interminável do Bach no filme ‘Marca da maldade’. O começo do filme é uma tomada contínua com uma câmera acrobática que segue os movimentos de um carro e ao mesmo tempo revela o cenário em que se passará a história, uma sórdida cidade de fronteira entre os Estados Unidos e o México – tudo sem um corte. A tomada termina com a explosão do carro e com a plateia tão admirada quanto, provavelmente, os primeiros ouvintes da nota do Bach.
Outros diretores, como o Brian de Palma, por exemplo, experimentaram com longas tomadas sem cortes, mas a ‘ouverture’ do Welles em ‘Marca da maldade’ permanece um clássico imbatível. O grande Hitchcock, em ‘Festim diabólico’ (título cretino para ‘Rope’) quis fazer todo o filme com uma tomada só, apenas camuflando os cortes a que era obrigado para trocar as bobinas da câmera a cada dez minutos. Na época, a técnica não estava à altura do gênio. Mas Hitchcock também fez uma abertura antológica: com uma única passagem pelos quadros na parede do personagem do James Steward no começo de ‘Janela indiscreta’, ele nos mostra quem é o personagem, o que ele faz na vida e como foi o acidente que resultou na sua perna engessada.
Bach levou uma vida sem percalços de burgomestre, mas foi um protótipo do criador que, num único lance inesperado de audácia, fulmina a ortodoxia. Anos depois de Bach, Gustave Flaubert daria a receita para todo artista: viva como um pacato burguês e enlouqueça na sua arte.
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