O Caduceu e as Serpentes
Ronald Mendonça
Médico e Membro da AAL
Com o rosto sulcado pelo arado do
tempo, tomando emprestado a metáfora de A. Herculano, com as escassas cãs
orvalhadas pelas noites de vigília em intermináveis plantões, tenho a
convicção do meu modesto papel, nem por isso desimportante, na comunidade.
Afinal, quatro decênios já foram vencidos.
Desnudado das vaidades mundanas,
acho que o que se espera do velho esculápio é a infalibilidade. Não é por acaso
que médicos encanecidos são convocados para tentar solucionar os casos mais
complicados.
Vou repetir: o médico é um dos
poucos especialistas nos quais os cabelos brancos conferem credibilidade e segurança. Daí, nós encontrarmos clínicos e
cirurgiões com consultórios abarrotados, sem perder um centímetro do prestígio amealhado.
Não me queixo. Apesar das dores
das decepções, nos meus quarenta anos de profissão tenho tido motivos de
envaidecer-me e emocionar-me com inesperadas demonstrações de carinho e
reconhecimento.
Ainda médico jovem fui agraciado
com casos de hérnia de disco que reconheceram absoluto sucesso. Lembro um deles
-tinha trinta e poucos anos- quando fui procurado por um casal de mulheres. Uma
das moças tinha dores excruciantes na região lombar.
Concluída a cirurgia com êxito,
dias depois atendi o simpático casalzinho de lésbicas no ambulatório do SUS. Em
estado de graça pela melhora das dores, a operada brindou-me com uma inscrição
tatuada em um dos punhos. Era o meu nome. Lá está indelével.
A companheira da minha paciente, uma
ex-jogadora de futebol, me traria algo “picante”. Abro parêntese para dizer que
nossas amigas eram habituadas a comemorar vivências com tatuagens. Uma delas,
romance outonal, tivera um caso tórrido com uma decadente cantora de rock. Parece
ter sido algo arrebatador.
Como recordação daqueles tempos, conserva
carinhosamente, em uma das nádegas, tatuagens dos Beatles “chapados”. A cantora
amava mesmo a caderneta de poupança da namorada, os jantares caros, os vinhos
encorpados, as roupas de grife e os motéis de primeiro mundo. A roqueira era
mais exigente e caprichosa do que amante argentina.
O fato é que nossa amiga
surpreendeu. Sem que tivesse dado qualquer pista do que se tratava, para gáudio
das torcidas do Flamengo e do Botafogo, a ex-jogadora exibiu, de inopinado, próximo
à prega inguinal, a tatuagem representando um caduceu e duas serpentes. Hipócrates
vibraria com a exótica homenagem.
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