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quinta-feira, 3 de julho de 2014

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

O Caduceu e as Serpentes
Ronald Mendonça
Médico e Membro da AAL


Com o rosto sulcado pelo arado do tempo, tomando emprestado a metáfora de A. Herculano, com as escassas cãs orvalhadas pelas noites de vigília em intermináveis plantões, tenho a convicção do meu modesto papel, nem por isso desimportante, na comunidade. Afinal, quatro decênios já foram vencidos.
Desnudado das vaidades mundanas, acho que o que se espera do velho esculápio é a infalibilidade. Não é por acaso que médicos encanecidos são convocados para tentar solucionar os casos mais complicados.
Vou repetir: o médico é um dos poucos especialistas nos quais os cabelos brancos conferem credibilidade  e segurança. Daí, nós encontrarmos clínicos e cirurgiões com consultórios abarrotados, sem perder um centímetro do prestígio amealhado.
Não me queixo. Apesar das dores das decepções, nos meus quarenta anos de profissão tenho tido motivos de envaidecer-me e emocionar-me com inesperadas demonstrações de carinho e reconhecimento.
Ainda médico jovem fui agraciado com casos de hérnia de disco que reconheceram absoluto sucesso. Lembro um deles -tinha trinta e poucos anos- quando fui procurado por um casal de mulheres. Uma das moças tinha dores excruciantes na região lombar.
Concluída a cirurgia com êxito, dias depois atendi o simpático casalzinho de lésbicas no ambulatório do SUS. Em estado de graça pela melhora das dores, a operada brindou-me com uma inscrição tatuada em um dos punhos. Era o meu nome. Lá está indelével.
 A companheira da minha paciente, uma ex-jogadora de futebol, me traria algo “picante”. Abro parêntese para dizer que nossas amigas eram habituadas a comemorar vivências com tatuagens. Uma delas, romance outonal, tivera um caso tórrido com uma decadente cantora de rock. Parece ter sido algo arrebatador.
Como recordação daqueles tempos, conserva carinhosamente, em uma das nádegas, tatuagens dos Beatles “chapados”. A cantora amava mesmo a caderneta de poupança da namorada, os jantares caros, os vinhos encorpados, as roupas de grife e os motéis de primeiro mundo. A roqueira era mais exigente e caprichosa do que amante argentina.
O fato é que nossa amiga surpreendeu. Sem que tivesse dado qualquer pista do que se tratava, para gáudio das torcidas do Flamengo e do Botafogo, a ex-jogadora exibiu, de inopinado, próximo à prega inguinal, a tatuagem representando um caduceu e duas serpentes. Hipócrates vibraria com a exótica homenagem.

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