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segunda-feira, 28 de abril de 2014

UM TEXTO DE MAURÍCIO MELO JÚNIOR

A FRASE DO ANO


Aprendi a conviver com uma agenda maluca. Muitas vezes, no sossego de meu lar, como diriam os antigos cronistas, surge a convocação para mais uma viagem, em geral para falar de literatura em algum lugar. Sempre que bate o convite, bate-me no coração a frase de Oswald de Andrade: “Já falei de literatura na Sorbonne e no Sindicato dos Padeiros.” Nunca fui à Sorbonne, mas, novamente recorrendo aos antigos parceiros, já fui de Seca a Meca (encontrei na internet uma Ceca com C, que seria a mesquita de Córdova, na Espanha, a mais importante do Ocidente, mas opto pelo popular, com S) para dizer de autores e livros.
Pois bem, foi numa dessas viagens, digamos, emergenciais que ouvi pela enésima vez a frase do ano.inc
Desembarcava no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Tudo tinha um sabor antigo ao descer a escada, pisar na pista de pouso e caminhar até o salão de desembarque. Ali, o tumulto. As bagagens demoram a chegar, o espaço das esteiras é mínimo, as pessoas se amontoam e uma senhora mais impaciente desabafa:
- Imagine na copa!!!
Saí sem dar respostas. Tomei um táxi e segui cidade a fora num trânsito emperrado. Procurava folhear uma revista para passar o tempo, quando não olhava para a beleza das montanhas decoradas com bondinhos e um Cristo de braços abertos, além do mar eterno e azul. Vivia este breve deslumbre, este alumbramento bem Manuel Bandeira, quando o estressado motorista desaba:
- Imagine na copa!!!
Por mais que meus delírios ficcionais sejam exercidos, não consigo imaginar como será na Copa. E isso por dois simples motivos. Primeiro tem o fato de a realidade estar sempre surpreende a nós, meros ficcionistas mortais. Depois, confesso, não penso muito em obras feitas exclusivamente para um evento, afinal, como diria minha amiga Tânia Rössing, evento é vento. Como bom otimista, creio que seremos um dia beneficiados com toda esta bagunça, três meses ou três séculos pós-Copa.
Vamos lá, vivemos uma realidade nova. Já não temos mais a possibilidade ágil que permitiu erguer uma cidade, Brasília, no meio do nada. Tudo aquilo foi um espanto. Contam mesmo que JK trouxe uma jornalista francesa para conhecer aquele universo de homens, máquinas, concretos e poeiras. E a moça, ainda no avião, espantada com tudo, perguntou:
- Presidente, não é um absurdo construir uma cidade no deserto?
- Absurdo é o deserto. – Respondeu o eterno presidente bossa nova.
Assim eram aqueles tempos. Juscelino era ousado e determinado. Queria que a cidade tivesse seu lago quando inaugurada. Contratou uma empresa americana para a empreitada. Dois anos depois viu que a coisa não andava. O pragmatismo dos gringos não se adequava às urgências e ao espírito improvisador brasiliense. Desfez o contrato e chamou os engenheiros locais para tocarem a obra.
- Presidente, só há uma solução. Represar as águas enquanto se ergue a barragem.
- Qual o risco que corremos?
- Chover além da medida nas cabeceiras dos rios e a enxurrada levar com ela todo trabalho.
- Vamos correr o risco.
Por milagre de São Pedro ou sorte de JK, o certo é que a barragem até hoje segura as águas plácidas do Paranoá.
Mas como já disse, os tempos eram outros. Hoje com tantos tribunais, fiscalizações e ibamas talvez Brasília ainda fosse uma borboleta pousada nos sonhos ousados de Lúcio Costa. Tempos outros, onde os administradores ousavam e por princípio eram de fato honestos. Juscelino mesmo teve que recorrer aos amigos para sobreviver em seu exílio parisiense. E Sandoval Caju, ex-prefeito de Maceió, deixou o poder cassado no princípio do golpe de 1964 sem sequer uma cachorrinha para puxar.
Sandoval também era ousado. Certa feita, durante uma solenidade oficial, recebeu uma alta patente da marinha. Este senhor fez um emocionado discurso sobre um desses patrimônios morais que têm todas as forças armadas. Sandoval, ainda sob a emoção do discurso militar, declarou que faria uma praça em Maceió homenageando a figura e mais, a inauguração seria na data seguinte em que se lembrava o dito patrono.
Neste ponto a autoridade pediu um aparte, e disse que isso seria impossível, pois a data em questão se daria dali a uma semana. Sandoval não se intimidou e pediu que seu interlocutor agendasse a volta a Maceió. O certo é que na semana seguinte a praça estava ali. Contava Sandoval que quando desafiou os engenheiros municipais para a empreitada, um deles questionou:
- Prefeito, e a licitação?
- Vamos fazer a obra. Depois a gente faz a licitação.
Deixou a prefeitura sem ter sequer uma cachorrinha a quem puxar.
Tomara que as obras atuais sejam complacentes com nossos impostos e nos deem alguma alegria futura. Do contrário teremos que rever a frase do ano.
Ô copazinha desgraçada, essa daí.

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