Páginas

sábado, 9 de fevereiro de 2013

JORNAL DA BESTA FUBANA


RESTOU O ESPÍRITO

Na foto antiga o menino se veste de pirata. Bermuda preta com as pernas cortadas em pontas, uma camisa possivelmente vermelha, da mesma cor do lenço amarrado na cabeça. Pelo menos são as cores que se pode deduzir quando se apanha uma fotografia em preto e branco e se pensa nas tradições. Tampão no olho esquerdo e uma espada de plástico (amarela? prata?) na mão direita. Aberto, o olho direito renova a alegria e o riso discreto não deixa dúvidas: É carnaval.
 
Já não sei em que gaveta do passado se esconde tal fotografia, ou mesmo se ela ainda existe, se já não se perdeu nas ventanias do tempo, ou se existiu de fato. As dúvidas, como as certezas, nascem do desejo de se acreditar seja lá no que for. Ficou de fato a imagem na memória, na impossibilidade do olvido. Era marcante a expressão do menino dividido entre a imposição de um gesto ensaiado e a ansiedade de se ter eternizado num papel, ele que certamente não sabia da frágil perenidade dos papéis. 
 
Ao que parece era folião, ou pelo menos um ensaio desta condição. Dali pode ter saído com a família para uma matinê num clube da cidade. Pulou frevo, bebeu guaraná, jogou serpentinas e confetes no ar, pois assim se dava a possibilidade da festa. Outro registro não ficou daquele dia senão a fotografia (ficou? desbotou?). Tudo mais se perdeu, mas restou o espírito que, também folião, ganhou asas.
 
Numa quinta-feira pré-carnavalesca estava em Catende, vestido de mortalha, com uma placa falando mal de alguém numa mão e um copo de cerveja na outra. E cantava todas as marcinhas, todos os frevos que a breve orquestra soprava. O sonho da Filopança era exercer uma liberdade que andava maculando aqueles dias idos. O fato é que pouco sabíamos das tramas ocultas nas entranhas do poder. Apenas dançávamos, pulávamos, cantávamos, criticávamos a mediocridade instalada no pequeno burgo. Isso bastava para nos sentirmos felizes. E éramos felizes.
 
Era carnaval, e até mesmo a repressão parecia aliviar suas ganas. Num dia de momo qualquer o espírito sem fantasia descia uma ladeira de Olinda. Cantava um frevo, com certeza um frevo, tocado pela orquestra mais próxima. Descia uma ladeira rodeado por outros tantos foliões, a cabeça cirandando de cerveja e lança-perfume comprada de contrabandistas no cais do Recife. Uma moça pediu um esguicho da lança em sua blusa, e quando levou a veste ao nariz, os seios belos e pálidos se mostraram ao sol dourado do Nordeste. Uma festa, mas logo nos perdíamos no meio da turba.
 
Seguiu o espírito pelas ladeiras. Numa pausa esguichou um pouco da lança na camisa e baixou o rosto para aspirar. Quando levantou a cabeça deu de cara com um soldado que tudo observava. Foi só o tempo de fazer um aceno de paz e novamente mergulhar na multidão. Tudo era festa.
 
Recife e Olinda são a festa e o espírito, mesmo pobre em suas certezas, sabe que nestes dias de carnaval, ou se baixa nestes terreiros ou se vai a um retiro espiritual. Não existe meio termo, afinal esta folia é para os espaços das ruas, para o exercício de uma cidadania libertária, para o sonho da leveza que traz a falta de compromissos.
 
Foi assim que o espírito acalentou uma suave e breve vingança. Num ano eleitoral, nem bem tocava os tambores da folia e já alguns automóveis circulavam pelas ruas de Brasília com um provocador adesivo: Volta Roriz. Era a turma saudosista de um velho governador vindo de Goiás que desgraçou a cidade com sua política rasteira e clientelista. Fora do poder, desejavam a volta esquecidos do Pacotão. O irreverente bloco fundado por jornalistas, sempre de língua afiada, confeccionava as faixas de protesto para o desfile. E neste ano, por sugestão do espírito, abriu o cortejo berrando por escrito: Volta Roriz, Para Goiás.
 
Além do espírito, restaram as emoções, incontáveis.
 
Sexta-feira, sete horas da noite, abertura do carnaval do Recife. E se vê o quase impossível. O cronista José Teles, avesso às multidões e às folias, no meio do mundão de gente a olhar o palco principal. Como todos, esperava a Naná Vasconcelos e os batuqueiros dos vários maracatus da cidade. “Mestre Teles, você por aqui?” “Mas não é mesmo? Maluquice a minha. Tá tudo uma porcaria. Gente prá caralho, ninguém consegue ver nada, imagine quando começar o frege? Não vai se ouvir nada. Eu vou é embora.” E saiu para nunca mais voltar. É o mal humorado mais bem humorado que conheço.
 
O espírito ficou. E Naná baixou tocando tudo quanto era possibilidade de sons e ritmos. Já na abertura, batucando o Hino Nacional, arrepiou a turba. E para arrematar, depois de festejar todas as folias, baixou Villa-Lobos e o Trenzinho Caipira. Foi de doer de emoção. E as lágrimas molharam a face.
 
Seguiu em frente. Coral Edgar Moraes, Lenine, Claudionor Germano, Alceu Valença, Antonio Nóbrega… O relógio apontava duas horas da manhã quando se ouviu a voz de uma pitonisa anunciando o brilho da beleza. No palco principal da festa Maria Bethânia cantava frevo.    
 
Carnaval também tem delicadezas.
E o espírito, já de tantos carnavais, continua zanzando pelo mundo invisível da folia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário