Com arte e manha, FLIMAR transforma Marechal
Deodoro
“Uma garça solitária observa o horizonte à beira da
Lagoa Manguaba, ao lado de um barco artesanal de pesca. Essa garça não tem
pressa, caminha a passos lentos e deixa marcas no chão ao mariscar. Assim é a
FLIMAR: serena, poética, inesquecível.
Um observador cartesiano que participasse da FLIMAR
veria apenas mais uma das muitas festas literárias que surgiram no Brasil no
saudável rastro deixado pela FLIP. Mas o que se passa em Marechal Deodoro desde
que Carlito Lima assumiu a secretaria de cultura é algo verdadeiramente
revolucionário: com apoio do prefeito Cristiano Matheus, o escritor alagoano,
incansável, realiza um evento que já deixou marcas profundas nos corações e
mentes da cidade.
A FLIMAR, a bem da verdade, não se limita a um
evento: é desde o início um acontecimento político, cultural e social. No texto
que escrevi no ano passado, afirmei que quando a literatura toma as ruas
amplia-se o campo do possível. Ao voltar este ano a Marechal Deodoro, vejo que
a literatura pode fazer parte de um amplo projeto de transformação social.
Prova disso é a modificação urbanística da orla
lagunar e a ocupação desse espaço público pela população local. No ano passado,
depois das seis da tarde, Marechal Deodoro parecia uma cidade-fantasma saída de
um conto de Gabriel García Márquez. Este ano, a orla foi ocupada pelas tendas
da Flimarzinha. Hoje, além dos quiosques, tem-se às margens da Lagoa Manguaba
quadras de esporte e o livre acesso à internet.
Como disse o escritor Homero Fonseca, o significado
de uma festa literária vai muito além da mera “espetacularização” de que falam
alguns críticos. Uma festa literária aproxima as pessoas e exercita a arte do
encontro. Mais que isso, é um dos poucos instrumentos, além da própria leitura,
que permitem fortalecer o reconhecimento social do escritor. No Brasil, até bem
pouco tempo, os escritores eram para muitas pessoas seres distantes,
inatingíveis, espécie de monges abnegados que em suas casas lutavam com os
rascunhos. Ver Ignácio de Loyola Brandão rodeado de crianças na saída do
auditório é cena que não se apaga da memória (e para algumas crianças de
Marechal Deodoro essa foi a primeira vez que travaram contato com um escritor).
A coisa é mesmo espetacular e não há nenhum
problema nisso, desde que o espetáculo não seja um fim em si mesmo. A festa
alagoana tem como objetivo democratizar o acesso à leitura literária (e não
apenas ao letramento), como parte de um projeto educacional em que também se
destaca a construção de uma faculdade municipal, onde certamente os filhos dos
que hoje trabalham nos canaviais e nas pousadas da praia do Francês poderão
estudar (e estudar de verdade, nada de “ensino a distância”, coisa bastante
duvidosa desde os filósofos pré-socráticos).
Saio da FLIMAR mais uma vez encantado e sobretudo
entusiasmado, no sentido grego da palavra: carregando deus dentro de si. Uma
vasta programação na escola técnica federal com palestras e oficinas, bem como
nas escolas públicas e nas praças. Concertos nas igrejas, exposições,
apresentações de grupos folclóricos, contação de histórias, concurso de
redação. Cabe destacar também as tradicionais bandas filarmônicas da cidade e a
expressiva presença de cordelistas. Estudantes e professores de outros estados
brasileiros também estiveram presentes à festa alagoana, saudando o trabalho
árduo da equipe que ao lado de mais de quarenta escritores deu ainda maior
envergadura a essa segunda edição da FLIMAR, que em meio ao casario colonial e
a um cenário paradisíaco estende também seus braços a escritores de outros
países (Argentina, Bolívia, Moçambique).
Como ainda carrego Descartes na maleta, pude
observar que o tradicional “fuso horário” de 60 minutos que alegremente se vê
em Marechal Deodoro diminuiu este ano para 45 minutos. Deve chegar a 30 minutos
no próximo ano, mas jamais a menos que isso, o que é muito bom: como a garça, a
FLIMAR não tem pressa em existir, pois sabe que veio para ficar.”
Ovídio Poli Junior
(Paraty - RJ)
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