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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

CRÔNICA DE RICARDO MOTA, ENVIADA POR CIDINHA


O riacho dos meninos

Ricardo Mota

Atravessávamos aquele riacho, que nos parecia largo, pela pequena ponte de madeira, ou, meninos mais afoitos, saltando os dormentes da linha férrea. Via-se, ainda, nas suas águas já um pouco turvas, pequenos peixes coloridos que, de quando em vez, alguém capturava para um dos aquários das redondezas.
Os mais velhos até pescavam ali, quando o nível das águas subia, resultado da alta da maré da Praia da Avenida. Se não pegavam grande coisa, tinham pelo menos uma ocupação que não exigia maior esforço e até adiantava uma boa conversa. O riacho nos servia sem pedir nada em troca. O que lhe apetecia, indicava em silencioso e regular movimento, era seguir ao  encontro definitivo com o mar. Lá chegando, não haveria mais razão de existir com corpo e nome próprios.
Quando jogávamos futebol em um dos campos que ficavam nas suas margens, não faltava quem se arremessasse em prazeroso mergulho para buscar a bola chutada com força demasiada por algum atleta mais decidido. Temer o quê? Todos sabiam nadar, e essa era a única coisa que se poderia exigir de quem se aventurasse no salto, que terminava por cortar a lâmina brilhante.
O melhor “gramado”, entretanto, ficava exatamente na foz do riacho, quando a maré secava. A bola corria rente ao chão e possibilitava, aos de melhor domínio, seu show particular. Depois? Um mergulho ali mesmo, ou no marzão logo em frente, para comemorar a vitória ou lavar a alma da sofrida derrota.
Contava-se, então, que o riacho havia corrido por outros caminhos, mas fora desviado para aquelas bandas pela força da grana, que sempre definiu o destino dos homens, quanto mais das águas acanhadas (para eles) que iam se desmanchar no oceano! Nós já o conhecemos ali, na vizinhança, a nos dar bom dia, no verão, e até a nos amedrontar nos tempos de chuva.
Por ele passaram camas, mesas, objetos de todos os tamanhos trazidos pela grande enchente de São José da Laje, em 1969. Os garotos víamos boiando os sinais da tragédia, relatada em tons dramáticos pelas emissoras de rádio. Perplexos, chegamos a confundir, com indisfarçado horror, o que seria apenas uma boneca com uma criança. Assustadora fantasia, gritada em uníssono. Quase acreditamos, não fosse uma voz mais serena e madura a nos alertar para o erro. Alívio.    
Foi então que vieram as primeiras notícias: um posto de gasolina estava jogando óleo e lixo nas águas que eram nossas. Pior: um hospital, construído próximo à ponte, fazia maior estrago. De lá sairiam os restos humanos indesejáveis. É certo que não apenas por isso, mas quando nos demos conta, o riacho estava doente. Apodreceu às nossas vistas, e, paulatinamente, viramos as costas para ele. Já não queríamos a sua companhia nem dividir as nossas alegrias com aquele canal sujo e desprezível. O riacho fedia.
As belas casas construídas às suas margens – até a de um ex-governador – foram se desvalorizando e tornaram-se, quase todas, escritórios, estabelecimentos comerciais, lugares onde as pessoas passam e vão embora, sem ali deixar nem um pouquinho que seja do seu coração. Não era assim conosco, “a turma do Salgadinho”, antes que trocássemos de mal com ele.
Hoje, no lugar que era riacho há apenas uma imensa ferida, pútrida, no Centro da cidade. O esgoto a céu aberto é uma chaga que parece incurável, supurando dia e noite. A ação dos homens roubou-lhe o direito à vida. É possível que só habitem, ali, bactérias pestilentas e indesejáveis para nós. Melhor evitá-lo. Olhá-lo, para quê?
O riacho da infância de tantos envelheceu solitário e do pior jeito que pode acontecer: sem direito a uma morte digna. Pudéssemos dar-lhe o piedoso repouso, qual seria o seu epitáfio? Talvez:
“Aqui jaz um riacho de alma agreste: de dor em dor, secou por fora e por dentro”.

Um comentário:

  1. É MEU AMIGO CARLITO ATÉ EU JÁ TOMEI MEI BANHO ALI NAGUELE RIACHO QUANDO VINHA PASSAR FÉRIAS NA CASA DE MEU TIO, INFELIZMENTE ACABOU

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