sábado, 6 de junho de 2015

UM TEXTO DE MARCOS DAVI - GAZETA DE ALAGOAS

Os cadeados e a ponte
Por: » MARCOS DAVI MELO – médico e membro da AAL e do IHGAL
Em um dos melhores momentosda ópera Rigoletto de Verdi, o tenor canta “ La dona è móbile qual piuma al vento/Muta d’acento e de pensiero” (a mulher é instável/ Como pluma ao vento/Muda de pensar como de acento). Muito tempo depois, Freud, ao final da vida declarou, vencido, que a mulher era um continente imenso e desconhecido, uma coisa para poetas e não para pensadores.

Tão indecifrável é a mulher que à procura de submetê-la ao seu domínio, o homem já chegou a extremos bárbaros como os cintos de castidade, grotescos cadeados de ferro usados na Idade Média, que lhe tornavam inacessíveis os órgãos genitais...e não se sabe como, elas conseguiam copular na ausência de seus verdugos. 

A notícia de que a prefeitura de Paris estava retirando os cadeados que ameaçavam derrubar a Ponte des Arts, também chamada de Ponte dos Apaixonados, merece outros registros: inaugurada por Napoleão em 1820, de um de seus lados está o Louvre, onde hoje estão a Mona Lisa e outras obras-primas, como as imensas “Balsa de Medusa”, de Géricault e “As bodas de Canaã”, de Veronese, que precisaram ser remetidas para o Château de Chambord, no Loire, antes que os nazistas ocupassem a cidade.

Do outro está, à margem esquerda, o Hotel Lutetia, sede da Gestapo e da prisão de Chambre-mídi, onde enclausuravam os resistentes antes de enviá-los para os campos de concentração, o Boulevard Saint-Michel e o Deux Magots, onde então se reuniam Picasso, Sartre e Camus e ainda se pode tomar um cálice de poire, a bebida preferida de Ulisses Guimarães.

Aquela foi uma época em que os sentimentos humanos oscilavam entre a colaboração com os nazistas ou a resistência, mas primordialmente, buscavam a sobrevivência, existindo entre eles um enorme leque de nuances, ambiguidades e mesmo paradoxos.

A Pont des Arts tem uma longa história na vida parisiense e a retirada dos cadeados não a suprime. Atravessaram-na milhares de sentimentos humanos: de amor e de ódio; da alegria suprema à profunda tristeza. Nada que possa ser perenizado por cadeados de metal, que os sentimentos humanos são etéreos e fugazes.

Ninguém como o Vinícius de Moraes e seu Soneto da Fidelidade para mostrar que o domínio dos sentimentos humanos e principalmente, do amor, são quimeras inalcançáveis “Eu possa me dizer do amor (que tive)/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure”.

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